Palavras
A política e a Europa foram tomadas por uma vaga de palavras, um quase dialecto, incompreensível para os comuns mortais.
“Palavras, palavras, palavras”
Hamlet (Shakespeare)
1. Definitivo não é extraordinário. Extraordinário não é definitivamente ordinário. Mas o ordinário não é sinónimo de temporário. Pode significar até excepcional. Tão repetidamente excepcional que até pode ser permanente. Ainda que passe por ser transitório, o que não significa necessariamente anual. Mas, mesmo assim, especial.
Tudo isto à volta de cortes. Ou de poupanças, o (novo) nome do aumento de impostos ou do seu equivalente algébrico do lado da despesa. Cortes que só por si vêm sendo também sinónimo de reforma do Estado. E havendo cortes politicamente disfarçados, nunca se sabe se é a somar ou a substituir ou, se sendo a substituir, se soma. É por isso que a palavra adicional não significa necessariamente mais, mas mais menos. É a aritmética desta forma de austeridade. De tal modo que parece que as palavras passaram a ter mais poder do que as ideias.
2. Discussão pública da reforma do sistema de pensões? É só escolher no cardápio das soluções não lidas ou mal digeridas. Espanha, por exemplo (que, por acaso, está bem atrás de nós). Ou Suécia, que é mais sofisticada. Ou Suíça, pois claro. Ou mesmo a Alemanha. Coisa simples, desde que haja “corte e costura”. “Amplo debate público”, diz-se, sem corar. Com quem? Mistério...
Criou-se um grupo para reflectir sobre uma reforma da Segurança Social que seja duradoura. Tão duradoura que está obcecada apenas com o problema orçamental de curto prazo predeterminado no MF. Um indisfarçado meio de chegar a 2015: convergente no que for possível, divergente no que for necessário. Parte-se do resultado (financeiro) e desenham-se as “reformas” para o atingir. Tudo misterioso e errático...
Neste contexto surgiu uma nova modalidade de briefing em que há quem ouça, mas ninguém fala. E do qual resultou um cacharolete de palavras justificativas como manipulação, especulação, ruído, desentendimento, embaraço.
Neste episódio reagiram o primeiro-ministro, o vice-primeiro-ministro, o ministro da Presidência, o ministro adjunto e até o ministro da Saúde. Só não falou quem deveria ter falado: o ministro da Segurança Social e a ministra das Finanças.
3. Num outro plano, Portugal inteiro não pode balbuciar essa palavra maldita que é reestruturação, assim decretaram os entendidos, cá e em Bruxelas. Não vá o diabo tecê-las e os mercados (curiosamente, agora sempre no plural) desconfiarem. Previu-se até que só esta palavra faria subir em flecha os juros. Talvez renegociação, reorientação, resolução ou recomposição, que têm a vantagem de ser suficientemente ambíguas para não se dizer o que se quer dizer. Aliás, a palavra reestruturação até dá jeito a alguns críticos com a insistência desonesta da sua interpretação como perdão facial de dívida (ponto que afasto liminarmente). Insinua-se um falso “não pagamos” para se quase impor o “não falamos”. Como reflectiu Virginia Woolf: "A coisa nenhuma deveria ser dado um nome, pois há perigo de que esse nome a transforme."
Não se pode falar de reestruturação, mas não há pruridos em se falar em empobrecimento (à parte os Audi), ainda que às vezes enroupado de ajustamento e mesmo que em regime de experimentalismo social e geracional. E do empobrecimento através de uma reestruturação (camuflada de poupança) que se vem fazendo quanto à dívida da República aos reformados.
4. Enquanto andamos nos trocadilhos Governo-oposições de saída limpa, cautelar, limpa quanto baste, cautelar quanto necessário, a “clareza” de todos estes assuntos é para ajudar as pessoas comuns a perceber as questões. Como agora sói dizer-se, uma forma de transparência que é uma outra palavra alcandorada a obrigatória em qualquer intervenção pública, muitas vezes para a ofuscar. E no caso dos mais velhos para os acalmar e lhes dar a entender que tudo é para o seu bem. Um monumento de insensibilidade onde se põe e dispõe em circuito-fechado da vida de milhares e milhares de pessoas que mereciam ser integralmente respeitadas. A desconsideração com que são tratadas em comparação com a delicadeza com que se age (ou não) face a outros interesses é inadmissível. Por exemplo, foi evidente (e bem) a busca de consenso para o IRC, como agora é notório, para a CES, o carácter algo secretista quase significando a inutilidade de consenso.
5. Nada exclusivo de Portugal, diga-se em abono da verdade. A política e a Europa foram tomadas por uma vaga de palavras, um quase dialecto, incompreensível para os comuns mortais. Há quem faça gala em usar termos que nada dizem, mas que impressionam ou dissimulam a vacuidade. Desde a famosa geometria variável, à narrativa, temática e problemática, sinergia e imparidade, ao alocar, agilizar, alavancar e customizar, ao efeito já descontado em sede de qualquer coisa, ao disfuncional, resiliente, etc.
Como disse Florbela Espanca “tão pobres somos que as mesmas palavras nos servem para exprimir a mentira e a verdade".
Economista