Tempos históricos

Ainda me lembro quando me falaram pela primeira vez dos gülenistas. Parecia uma coisa de um romance de aventuras. Uma sociedade secreta comandada por um teólogo que vivia em recolhimento no estado da Pensilvânia, nos EUA, mas que dominava milhares de escolas, colégios e centros de explicações - e através deles posicionava os seus acólitos em todos os lugares de poder, tanto no "estado real", como no "estado profundo".

Esta do "estado profundo" era outra digna das melhores séries de ação e suspense. Todos os turcos garantem que existe um estado paralelo, oculto, para lá da superfície do que é dado ver ao cidadão comum. A discordância começa em saber quão profundo é, que setores afeta (o exército, o judiciário, a polícia?) e quem o domina.

E há mais. Ergenekon, por exemplo: terá sido uma conspiração dos militares para derrubar o governo, ou uma invenção do governo para manietar os militares? E há mais, muitas mais conspirações ainda: religiosas e laicas, esquerdistas e direitistas, étnicas e nacionalistas.

Ainda assim, há que admitir que poucas eram tão difíceis de aceitar como a história dos gülenistas. A sério? Seria possível dominar um país daquele tamanho, com uma economia a crescer dez por cento ao ano, através de centros de explicações? Pelos vistos sim, se muita gente acreditasse nisso. E muita gente acredita - agora, nada menos que o primeiro-ministro.

Em princípio, tudo aproximaria o chefe do governo, Recep Tayip Erdogan, e o líder espiritual do "hizmet", ou "serviço", de Fethulah Gülen, o tal reclusivo clérigo da Pensilvânia. E durante anos, assim foi: ambos representavam a ascensão da classe média religiosa, ambos favoreciam um islão moderado e a sua compatibilidade com a democracia, ambos eram bem vistos pelo Ocidente (Erdogan participando das reuniões do PPE, de Angela Merkel e Durão Barroso; Gülen aparecendo em listas dos intelectuais mais influentes em revistas internacionais).

Mas alguma coisa se interpôs entre os dois homens e, se bem consigo entender, parece-me que foi dinheiro. Ambos são muito ricos e muito poderosos, e ambos mexem bem os cordéis entre os seus apoiantes para beneficiar os negócios que mais preferem. Através dos canais que detêm na imprensa, mais a esfera incontrolada das redes sociais, as histórias de corrupção começaram a manchar um e outro, e a guerra entre ambos foi declarada.

Como é natural, não é só a nós que isto deixa baralhados. É sobretudo à tal classe média devota que a ambos idolatrava. Até um dono de restaurante turco em Lisboa, de família religiosa, confessa a sua perplexidade: "os dois são bons", começa, "mas a partir de hoje, não vai ser igual". Hoje, ou melhor ontem, é o dia das eleições locais. "Se Erdogan desce, acabou; se Erdogan sobe, manda polícia" contra os gülenistas. O resultado dessa luta de poder deixa a Turquia paralisada na pior altura. Os russos acabaram de tomar uma posição de força no Mar Negro, onde a Turquia é o único verdadeiro contraponto. A luta entre turcos tem consequências para nós todos.

Já dizia uma praga chinesa: "que possas viver em tempos históricos!"

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