A Ucrânia e o maniqueísmo “neo-soviético”

Espera-se que a UE tenha uma palavra a dizer, distinguindo o trigo do joio no Governo de Kiev, enquanto a força da Maidan continuar viva.

Alguns dirão que isso se deve ainda à presença da ortodoxia comunista na nossa sociedade. Mas não é já de “ideologia” que se trata. Porque na atual Rússia de Putin a ideologia (“marxista-leninista” ou os seus derivados) esvaziou-se totalmente de qualquer conteúdo doutrinário, sendo substituída pela pura praxis do poder e da violência, fundada numa conceção maniqueísta do mundo e movida por sentimentos de antiamericanismo primário (para o qual, diga-se, a incontinência imperialista dos EUA tem fornecido bons pretextos).

As rebeliões e movimentos sociais sempre suscitaram tentativas de instrumentalização da parte de grupos organizados, prontos a cavalgá-los, tal como são uma constante as interferências das potências internacionais. Foi assim no tempo da Guerra Fria e continua a ser assim na atualidade, onde, aliás, a mesma está a ressurgir. Tal não justifica, porém, que se deva reduzir as mobilizações aos grupos organizados que nelas se insinuam. Na ausência de uma “vanguarda”, a dinâmica emancipatória dos protestos – quando existe – emerge dos interstícios dessa complexidade, isto é, das suas contradições internas. Não é preciso sermos marxistas para acreditarmos na “força do povo” nas ruas, e o século XXI tem vindo a comprovar essa evidência em diversos continentes. Maidan foi uma ação genuína e corajosa desencadeada por jovens estudantes e que mobilizou múltiplos setores sociais (embora mais tarde minada por grupos radicais).

Entalada entre os fortes laços culturais, linguísticos e a dependência energética e económica da Rússia, de um lado, e as tentativas de aproximação à União Europeia, de outro lado, a Ucrânia não conseguiu consolidar a soberania face a Moscovo, apesar da independência adquirida em 1991. Perante as sucessivas pressões e chantagens por parte das redes mafiosas ao serviço das oligarquias nascidas do enriquecimento ilícito (e do saque descarado a partir dos destroços do velho Estado soviético), a economia e as instituições do país ficaram reféns de poderes obscuros e ilegítimos, muitos deles sediados na capital russa e apoiados pela máquina da ex-KGB. A vocação violenta e imperial do poder russo ficou patente em episódios como o envenenamento do ex-Presidente Iutchenko e a construção e destruição de “candidatos-fantoches”, num contexto onde os “negócios” e a política se tornaram indestrinçáveis e onde, na própria Rússia e fora dela, os inimigos de Putin foram sendo perseguidos e eliminados uns após outros. A chamada “revolução laranja” de 2004 revelou, pela primeira vez, os sentimentos patrióticos do povo ucraniano e a sua vontade de “ocidentalização”, com Julia Timochenko como principal protagonista a tentar desligar-se dos seus antigos compromissos com as referidas redes oligárquicas. Seguiram-se em 2010 as manobras para eleger Ianukovich – um servidor incondicional de Putin –, cuja incompetência e falta de sentido de Estado se tornaram motivo de chacota, e cuja popularidade se desvaneceu na sequência do processo sujo de acusação e prisão da ex-primeira-ministra. Com uma economia atrofiada e o futuro das novas gerações hipotecado às mãos das oligarquias, estavam criadas as condições para a sublevação social, que irrompeu em Kiev em novembro, quando o ex-Presidente, seguindo mais uma vez as ordens do Kremlin, deu o dito por não dito em relação ao acordo com a UE e se vergou perante o “abraço do urso”.

É por isso que, quando olhamos para as posições de uma certa “esquerda” portuguesa relativamente à Ucrânia, a mesma que por todo o lado não faz outra coisa senão tentar manobrar os movimentos e os sindicatos, incentivando permanentemente os protestos de rua, ficamos pasmados de espanto perante as acusações de “golpismo” aos manifestantes da Maidan por terem tomado o poder pela força, enquanto as “milícias” e os “homens de verde” da Crimeia, que invadiram, ocuparam, humilharam os ucranianos (e marcaram com cruzes as portas onde residem famílias da minoria tartar), são tomados por “salvadores” contra as supostas ameaças “fascistas” a mando de Kiev. Em contrapartida, as imagens de Ianukovich em fuga a esconder os tesouros roubados ao povo ucraniano, ou o confirmado saque de milhões ao erário público parecem não impressionar os nossos eternos seguidores da propaganda do Kremlin.

O que esteve e está em causa na Ucrânia prende-se também com a história e a geo-estratégia num mundo desnorteado. Mas quem conhece a história não pode acusar os povos ucraniano ou tartar de “colaboracionistas” com o nazismo – quando os seus territórios estavam ocupados pelas tropas de Hitler e a maioria dos homens tinha sido alistada no Exército Vermelho – e ao mesmo tempo ignorar o genocídio deliberado de milhões de camponeses mortos à fome (o Holodomor, em 1932-33), e o extermínio e deportação dos tártaros por ordens de Estaline em 1944 (o Sürgün). Já os cientistas políticos, com a sua abordagem calculista, tendem a olhar o xadrez das disputas e as movimentações dos poderes hegemónicos como um mero jogo onde as populações locais não contam. Claro que a influência de grupos de extrema-direita como o Svoboda ou o Sector Direito (e dos seus líderes neofascistas) terá de ser neutralizada para que uma Ucrânia democrática e pró-ocidental seja viável, e para que, mesmo amputado, este país possa constituir uma zona amortecedora de conflitos e não um campo de batalha de consequências aterradoras. Não se trata de defender o Ocidente contra a Rússia, mas de defender a democracia contra a tirania e o “neofascismo” (que existem em ambos os lados da barricada). Para tal, espera-se que a UE tenha uma palavra a dizer, desde logo, distinguindo o trigo do joio no Governo de Kiev, enquanto a força da Maidan continuar viva.

Professor da Faculdade de Economia e investigador do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra

Imigrante ucraniana e apoiante dos protestos da Maidan

 

Sugerir correcção
Comentar