Como se faz um filme sem sair à rua

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A realizadora Haifaa al Mansour afirma que a vida dos jovens hoje é muito diferente do que foi a sua, numa pequena cidade em que um canal de televisão era o único acesso ao mundo exterior

As bicicletas são coisa de raparigas – este poderia ser outro título para O Sonho de Wadjda, da realizadora saudita Haifaa al Mansour. Wadjda, a rapariga que dá nome ao filme, está a viver aqueles que, para quem nasce mulher na Arábia Saudita, podem ser os últimos dias de liberdade, os últimos em que pode andar na rua de cabeça descoberta, e falar com o seu amigo Abdullah. E o desejo de liberdade de Wadjda tem uma forma muito concreta: uma bicicleta. Bicicletas não são coisa de raparigas, dizem-lhe. Mas ela não pensa assim. Poderá um concurso de recitação do Corão ajudá-la?

O filme é também a história da mãe de Wadjda, do seu esforço para viver numa sociedade que impõe às mulheres inúmeras restrições – sobretudo na liberdade de movimentos –, das desgastantes negociações com o motorista que a transporta para o trabalho, e do drama de não conseguir ter o filho que o marido quer (e que a sociedade os pressiona para terem).

O que mais nos surpreende em O Sonho de Wadjda é ter sido possível fazer um filme como este na Arábia Saudita. “Também fiquei surpreendida por o ter conseguido fazer”, confessa Haifaa al Mansour ao Ipsilon, numa conversa telefónica. “Mas a Arábia Saudita está a atravessar grandes mudanças, há muita coisa a acontecer sob a superfície, e há neste momento uma maior abertura em relação aos direitos das mulheres e à arte”.

Do interior de uma carrinha

E, no entanto, filmar continua a ser uma aventura. “Para mim o mais difícil foi mesmo conseguir fazer as filmagens na rua. Não foi um problema de autorização, porque tínhamos as autorizações. É um país em que há televisão e onde costuma haver filmagens para a televisão. Mas foi difícil lidar com a cultura conservadora que não compreende o cinema”. Haifaa arranjou uma solução para evitar problemas, sobretudo nos bairros mais conservadores, onde eram olhados com desconfiança: dirigia as filmagens, falando com os actores por walkie-talkie, a partir do interior de uma carrinha.

“A Arábia Saudita é um país conservador e eu continuo a ser cuidadosa com o que digo e o que não digo, preocupo-me em respeitar a cultura, embora, ao mesmo tempo, como cineasta queira ter uma voz sobre o mundo”, explica. Não quer provocar, e é por isso que não vai para o meio da rua dirigir filmagens. “Nos bairros mais conservadores é complicado as pessoas aceitarem a presença de câmaras, não compreendem o que é o cinema”. Mas o caminho não é o do confronto directo, acredita. “Não quis transformar isto num protesto. É muito importante respeitar as leis e trabalhar dentro delas para conseguir que as coisas mudem”.

Com essa atitude conseguiu terminar o filme que, diz, espera que “sirva para que as pessoas percebam melhor o que se passa na cabeça de muitas raparigas e compreendam os seus desejos e sonhos de ter uma vida normal”. E uma rapariga com o espírito rebelde de Wadjda e um olhar crítico sobre a sociedade (personagem inspirada pela sobrinha da realizadora), que futuro tem na Arábia Saudita de hoje? Será vencida e acabará por se transformar naquilo que se espera dela? Ou tem espaço para se manter fiel ao que é?

“Creio que enfrentará muitos obstáculos. Não será um caminho fácil. Mas para ela e muitas raparigas da idade dela, é uma viagem de autodescoberta. As mulheres têm que acreditar nelas próprias, lutar pelos seus sonhos”. Mas, sublinha, “não lutar de uma forma zangada mas de forma assertiva e continuada, continuando sempre a forçar as fronteiras, os limites, e a avançar.”

As pressões vêm de todos os lados. A família até pode ser relativamente liberal mas a escola é extremamente restritiva, sobretudo a pública. O filme mostra isso: professoras que advertem as alunas para que cubram os cabelos, que lhes ralham por falarem alto, lembrando que “a voz de uma mulher é a sua nudez”, raparigas de onze anos que mostram as fotos do casamento com um homem de vinte, ameaças de expulsão quando duas amigas apanhadas a pintar as unhas dos pés tentam esconder o que estavam a fazer e acabam sob suspeita de terem uma relação.

“As escolas do governo são assim”, conta Haifaa. “Temos muito poucas escolas privadas, e as públicas são das organizações mais restritivas do reino, geralmente dirigidas por pessoas com uma interpretação muito conservadora da religião.” Muitas delas mulheres. “As mulheres são o produto de um sistema social que as programa para pensar de determinada maneira, e muitas vezes são elas as guardiãs, as que querem manter as outras mulheres dentro do que consideram ser o certo, o que torna a sociedade pura. É uma situação triste, mas não podemos alterar isso.”

O que Haifaa quer evitar é a ideia que a sociedade saudita se divide entre mulheres boas e homens maus. “Há homens extraordinários, como Abdullah [o amigo de Wadjda] ou o dono da loja de brinquedos [que vende a bicicleta], que, embora de uma forma não ostensiva, dão um grande apoio às mulheres”.

E se esta é uma sociedade que pressiona as mulheres para que encaixem num determinado papel, a verdade é que faz exactamente o mesmo com os homens. “Simpatizo com a posição dos homens porque é difícil esse papel de guardião, de ter que controlar as mulheres quando elas são as mães, as filhas, as esposas, pessoas que eles amam e que têm que magoar. Não é uma situação fácil. Não é possível dizer que as mulheres são inocentes e que os homens são maus, é muito mais complicado do que isso. A única forma de construir uma relação saudável na sociedade é ir alargando um pouco esses limites, para que cada um possa ser quem realmente é.”

A vantagem de um filme como O Sonho de Wadjda é ser feito por alguém que conhece profundamente, por dentro, a sociedade saudita. Só assim é possível mostrar algo de tão complexo como é a relação entre uma mulher e o seu motorista. Haifaa solta uma gargalhada. “Essa é uma das ironias da Arábia Saudita: as mulheres não podem estar com homens, mas podem andar num carro com um motorista que não é familiar delas, e isso é considerado mais seguro do que guiarem sozinhas. Tem a ver com a vontade de controlar a mobilidade delas, saber de onde vêm, para onde vão.” Com os motoristas estabelece-se então um jogo de poder. “A relação é muito engraçada porque elas acham que são as patroas, dado que pagam. Mas os motoristas sabem que elas não podem ir a lado nenhum sem eles, por isso, na prática são eles quem tem o poder. São como o Tom e Jerry, elas sempre atrasadas, eles sempre a discutir, ninguém sai vencedor”.

Mas muita coisa tem vindo a mudar na Arábia Saudita – e é por isso também que um filme como este é possível (não foi exibido no reino, porque não existem salas de cinema, mas foi visto em várias sessões privadas, e por muitos sauditas nos países vizinhos). Hoje, uma mulher que queira trabalhar tem mais alternativas. “Há mais incentivos para trabalharem em centros comerciais, por exemplo. Mas continua a haver resistência dos conservadores, que as pressionam para que tenham medo e não vão. É importante desafiar esses preconceitos. E isso já está a acontecer, há muitas raparigas que querem apenas ter uma vida normal e estão dispostas a enfrentar essas pressões. As mulheres já não se assustam tão facilmente.”

O mundo começou a entrar pelo reino dentro, e isso faz muita diferença. “Cresci numa pequena cidade, onde só tinha um canal de televisão, que era o meu único acesso ao mundo exterior.” Apesar de os pais serem bastante liberais, Haifaa lembra-se de ser miúda e poder ir à loja, até ao dia em que, andava então na quarta classe, o pai lhe disse que já não podia sair à rua. “Senti-me confinada”.

“Hoje os miúdos têm tanta coisa, a Internet, os satélites, viajam, têm iPads, acesso a informação, a tecnologia, estudam no Ocidente. Não é possível manter o país tão fechado e conservador como antes”. O espaço das ruas pode continuar vedado às mulheres (e mesmo os centros comerciais têm horários diferentes para os dois sexos), mas abriu-se um espaço virtual na Net “no qual homens e mulheres podem encontrar-se e trocar ideias”. “Não somos nós contra o mundo”, diz Haifaa, “somos nós a tornarmo-nos também parte do mundo”.

Em 2005, quando começou a tentar fazer filmes, Haifaa recebia emails violentos e ameaçadores. Hoje isso praticamente já não acontece. O Sonho de Wadjda, uma co-produção Arábia Saudita /Alemanha, é o primeiro filme inteiramente rodado no reino. Foi aplaudido em festivais por todo o mundo, e chegou a ser seleccionado para o Óscar de Melhor Filme Estrangeiro, embora não tenha sido depois nomeado.

Tal como Wadjda acredita que vai conseguir a sua bicicleta, Haifaa acreditou que ia fazer o seu filme. Mesmo que tivesse de o filmar escondida dentro de uma carrinha. Afinal, as bicicletas – tal como o cinema – são (também) coisa de raparigas.

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