A arrogância dos vencedores

Um dia depois do referendo na Crimeia, a capital, Simferopol, acordou com mais soldados e armamento russos nas ruas. Bases militares onde ainda estão soldados ucranianos continuam cercadas por tropas de Moscovo

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Os militares russos fizeram notar a sua presença no centro da capiital Filippo MONTEFORTE/AFP

As ruas do centro de Simeropol foram bloqueadas por soldados russos com equipamento e armamento de forças especiais. Todos os acessos ao parlamento estavam barrados, numa vasta área do centro da cidade. São os mesmos soldados russos que têm, desde há semanas, cercado as bases militares ucranianas e ocupado locais estratégicos, como os aeroportos. Mas nunca se tinham mostrado assim, no centro da capital. Só deixam passar quem provar ser funcionário do parlamento, ou jornalista, depois de cuidadosamente revistado.

Uma conferência de imprensa fora marcada para o parlamento, para anunciar as novas medidas legislativas, que incluíam a declaração da independência e o pedido de integração da Crimeia na Federação Russa. Os jornalistas fizeram fila à porta do edifício, mas à medida que entravam eram confrontados com uma misteriosa lista, nas mãos de uns não menos inescrutáveis agentes policiais. Ouviam o nome do jornalista, órgão de comunicação e país, verificavam a pauta e diziam, secos: “Niet!”

Foi “Niet!” para as agências Reuters e AP, para vários jornais e canais de televisão de reputação mundial. Quando chegou a vez do PÚBLICO, após uma hora de espera, o homem nem olhou para a lista. “Niet!” Nenhuma explicação de critério ou procedimento. Tanto quanto foi possível perceber, só entraram órgãos de informação russos.

A hostilidade para com os media estrangeiros tornou-se explícita, sempre à beira de descambar para a violência. Mas bem mais séria é a repressão a qualquer palavra ou gesto a favor da Ucrânia. Vários activistas ou simpatizantes da Maidan têm estado fechados em casa. Pessoas que são contra a integração na Rússia não ousam exprimir opiniões em público, têm medo até dos vizinhos e conhecidos. Alguns, talvez muitos, nunca quiseram ver a Crimeia anexada à Russia, mas acabaram por votar a favor, fosse por medo de perseguições, fosse por falta de alternativas. “Kiev traiu-nos. Deixou-nos sozinhos”, disse uma mulher. “A Rússia, tenho de admitir, veio dar-nos uma mão, apesar de eu não gostar dos seus métodos, e achar que tudo isto é ilegal e falso, e que eles não têm aqui qualquer espécie de direito histórico. Mas Kiev traiu a Crimeia. Lançou-nos nos braços dos russos”.

Muitos, decerto a maioria, estão verdadeiramente satisfeitos, e sentem-se agora mais em casa. “Krutchev não tinha o direito de oferecer a Crimeia à Ucrânia. Quem lhe deu esse direito? Foi um abuso. Nós não somos um presente que se ofereça a alguém”.

Mas não deixa de sentir-se uma ausência, a vertigem de ter perdido um país de um dia para o outro. É perceptível tanto no medo dos ucranianos, tártaros ou cidadãos de outras etnias, como nos modos arrogantes dos vencedores.

Tensão nas bases militares
Nas bases militares ucranianas, cercadas há semanas pelas forças russas, a tensão aumentou visivelmente. Depois do anúncio, feito pelas novas autoridades, de que seria concedida uma “trégua” a estas bases até ao próximo dia 21, pensou-se que os cercos seriam levantados durante quatro dias, para que os ucranianos no interior dos edifícios pudessem fazer a escolha que lhes foi oferecida pelo governo: integrarem-se nas forças russas, tornarem-se civis ou fugirem para a Ucrânia.

Engano. Em vez de levantarem, os russos apertaram o cerco. Na base de Perevolnia, uns 15 quilómetros a sul de Simferopol, dezenas de camiões e blindados militares russos estavam estacionados ao longo da estrada. Espalhados pelos campos em redor, numa paisagem de montanhas desertas, com vastas manchas de neve, marchavam soldados russos de camuflado verde, fortemente armados.

Os “homens de verde” eram, como de costume, mudos. Nem uma palavra aos jornalistas, nem uma reacção aos fotógrafos ou repórteres de imagem. Já os elementos das unidades de auto-defesa se mostraram desusadamente desbocados. “Hoje ainda podes vir aqui, porque me pediram para ter paciência, e queremos evitar qualquer violência”, disse a um fotógrafo, um homem gigantesco que estivera a beber de uma garrafa de vodka. “Mas amanhã se vieres parto-te a câmara”.

Uma jornalista ainda lança, sem grande convicção: “E que tal respeitarem a liberdade de imprensa?” Resposta imediata de uma mulher que integrava a unidade de auto-defesa: “Não vos damos liberdade nenhuma, porque vocês mentem”. Outro homem da milícia: “São uns mentirosos. Andam a dizer que aqui só há violência, quando tudo está pacífico”. Outro: “Para trás! Afasta-te já daqui, ou levas um encontrão!”

O líder do grupo de auto-defesa, Aleksander Bogelshov, um homem atarracado que foi em tempos, disse, soldado do exército soviético, apresentou a sua versão do que se passava no interior da base: “Os soldados ucranianos estão lá todos, mas não sitiados. Podem sair e entrar quando quiserem. Estão bem, têm comida, boas condições e total liberdade de movimentos”.

Pouco depois, um soldado ucraniano avançou pela estrada, a passos largos, em direcção ao portão da base. Entrou, sem responder a nenhuma pergunta dos jornalistas. “Estão a ver? Ele saiu e entrou, ninguém lhe fez mal”, disse Bogelshov. E acrescentou que iria ao interior da base chamar o comandante ucraniano, para que ele dissesse aos jornalistas como tudo estava bem, sem problemas, no interior da base. Após mais de uma hora de espera, o comandante ucraniano nunca apareceu.

Quem surgiu no portão foi um padre da Igreja Ortodoxa da Ucrânia, depois de ter passado uns 40 minutos no interior da base. “Há um clima de grande apreensão e nervosismo lá dentro”, contou o padre, Ivan Svechen. “Têm medo que haja um ataque, a qualquer momento. E todos estão firmes em obedecer apenas às ordens da sua hierarquia legal. Farão o que lhes for ordenado pelos seus chefes, em Kiev. São fieis ao seu juramento. Se for preciso combater, tenho a certeza de que não hesitarão. Embora eu espere que isso não aconteça, e que não haja aqui um banho de sangue”.

O padre ortodoxo vai todos os dias à base, para rezar com os soldados. Até agora, disse ele, nenhum saiu, nem para ir para a Ucrânia, nem para se render. “Todos esperam ordens superiores”.

Enquanto falávamos com Ivan Svechen, a alguma distância da base, os elementos da milícia de auto-defesa aproximaram-se, para ouvirem a conversa. “Ele é maluco”, disseram depois. “Só diz disparates. Nós fartamo-nos de rir. Lá na terra dele ninguém lhe liga”.

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