E Antes do Adeus
O festival faz meio século este ano. Quem não o acompanhou antes do 25 de Abril não faz ideia do que era um concurso de cantigas que valia pelo menos tanto como um grande jogo da selecção nacional de futebol.
A imagem é conhecida: em Fevereiro ou Março, as ruas vazias e os cafés cheios de gente para ver em televisores pequenos a grande noite, a preto e branco. E não era por haver só a RTP — era um dia único, marcavam-se jantares para ver e discutir. Havia quem fizesse a sua votação. Alguns incompatibilizavam-se por ver de forma diferente as decisões do júri nacional, repartido pelas capitais de distrito. As crianças decoravam depressa as canções — e imaginavam que durante os 12 meses seguintes nada interessava mais aos adultos do que ouvi-las a repetir as principais. Até vir um novo festival.
A grande noite começou por ser uma coisa caseira da RTP, nos estúdios do Lumiar. No primeiro ano, 1964, há meio século, até os intérpretes foram convidados pela estação, cuidadosamente escolhidos para calharem duas canções a cada um: António Calvário, Simone de Oliveira, Madalena Iglésias, Gina Maria e o tenor Guilherme Kjolner, que dividia a vida entre o teatro lírico e a cançoneta.
Depois, aquilo foi-se tornando uma coisa mais a sério: júri de selecção; os autores e compositores escolhidos a decidirem eles os intérpretes; e passou-se para os estúdios da Tóbis. Em 1969, o palco passou a ser num teatro, começando pelo São Luiz — e com ele viriam mais público em directo, smoking, vestido comprido e algum cheiro a naftalina na farpela muitas vezes alugada; e, a partir de 1970, tivemos claques, explosões de agrado ou desagrado perante o correr da votação e pateadas. Boas intenções podem ter estado na origem da expressão “festival da camaradagem” para qualificar o certame de 1970; mas logo no seguinte se falava já de “guerra de editoras”. E houve até perdedor a mostrar em gesto de mão perante a câmara (e o país inteiro) a convicção de que o júri estaria comprado.
As editoras queriam ganhar e nesses primeiros anos o festival era o palco da rivalidade: a Valentim de Carvalho editou seis dos sete primeiros vencedores, mas em 1971 não resistiu ao assalto da nova Zip Zip (a etiqueta que nascera do programa de TV com o mesmo nome, de Raul Solnado, Carlos Cruz e Fialho Gouveia). Do choque sairia ganhadora uma terceira casa de discos, a Orfeu, do empreendedor Arnaldo Trindade, vencedora em 1972 e 1974. Carlos Cruz, sucessivamente envolvido com o Zip e a Orfeu, foi um dos arquitectos desse render da guarda.
Nas semanas anteriores ao festival, havia um frenesim de entrevistas e fotografias dos principais concorrentes. A certa altura, até se publicaram discos de pré-promoção dos intérpretes — com outras cantigas porque as concorrentes só se podiam ouvir na grande noite.A música portuguesa não passou toda pelo festival. Não foi lá Amália nem José Afonso nem muitos dos grandes. Mas concorreram imensos intérpretes dignos de nota, desde os mais velhos Tony de Matos e Maria de Lourdes Resende até aos jovens fadistas Maria da Fé e João Braga, passando pelo muito novo Marco Paulo.
Uma corrida de fundo
Nunca como nos primeiros 11 anos da prova, os que antecederam o 25 de Abril, o festival representou uma parte tão grande da história da música popular portuguesa. Porque havia então muito menos espectáculos, claro — nem a censura facilitava a sua realização. A perda de protagonismo do festival sobretudo a partir de 1980 é prova da animação do meio a partir dessa altura.
A importância do festival antes da revolução vê-se pela teimosia de muitos bons e óptimos intérpretes em concorrer. Reparem na lista de repetentes, alguns surgindo em certos anos com mais de uma cantiga: Simone, Tordo, Artur Garcia, Calvário, Madalena, Paulo, Tonicha e o Duo Ouro Negro participaram em três, quatro e até cinco festivais diferentes entre 1964 e 1974.
Para quase todos, tratou-se de uma corrida de fundo, em que o prémio só veio depois de várias derrotas. Vitórias à primeira — tiro e queda — só dois: Eduardo Nascimento (1967), com aquele vozeirão todo a embalar a partir dum “Oição” inesquecível, que na voz dum angolano nem parecia pronúncia errada; e Carlos Mendes que concorreu duas vezes (Verão em 1968 e Festa da Vida em 1972) e nas duas venceu.
Claro que o primeiro a ganhar, António Calvário, venceu à primeira. Mas ele, que cantava na Emissora Nacional desde 1957, já tinha sido Rei da Rádio, o maior dos louros antes de haver festival. E depois dos zero pontos lá fora amargou-as regressando ao concurso três vezes nos quatro anos seguintes sem nunca chegar aos quatro primeiros lugares.
Simone de Oliveira, que venceu em 1965 e em 1969, com duas canções completamente diferentes (Sol de Inverno e Desfolhada), é a grande intérprete na primeira meia dúzia de anos do festival. Perdeu três vezes, mas não concorria em 1966, o ano da vitória da sua rival Madalena Iglésias, tal como ela formada na escola da Emissora, o célebre Centro de Preparação de Artistas da Rádio, que educou intérpretes e regulou o gosto sobretudo nas décadas de 1940 e 50. Madalena, de olhos muito bonitos a seduzir as câmaras e derrapando uma vez na divisão das sílabas (“e a b’leza dela desde logo o prendeu”), trouxe o primeiro cheirinho a ié-ié (com mais ênfase na secção rítmica) numa canção vencedora.
Dos conjuntos modernos, vinha boa parte dos vencedores seguintes, um bom bocado mais novos: Eduardo Nascimento era dos Rocks; Carlos Mendes, Paulo de Carvalho (vencedor em 1974) e Fernando Tordo (1973) tinham todos passado pelos Sheiks; e Sérgio Borges (1970) era o vocalista do Conjunto Académico João Paulo. O que mostrava três coisas: o irreversível envelhecimento do Centro de Preparação de Artistas da Emissora; a renovação vinda do ié-ié (com estes, já não era só um cheirinho) e o poder de atracção do festival.
E assim referimos todos os intérpretes vencedores menos um. Mas já contaremos a vitória de Tonicha.
No segundo lugar, ficaram futuros vencedores (ou até 1974 ou um pouco mais tarde, no caso de Duarte Mendes e José Cid), mas também alguns que nunca chegaram a ganhar: o insistente Artur Garcia (que quase venceu em 1965); e, por duas vezes cada, o Duo Ouro Negro e Paco Bandeira. O que deixa por referir um grande perdedor — já lá vamos também.
Um festival antes e depois da chegada de Ary dos Santos
Mas, tratando-se de um concurso de canções — como tantas vezes se repetiu, mesmo que tenha havido casos em que a interpretação e até a orquestração foram decisivas —, importa falar aqui dos autores e dos compositores.
Sete dos primeiros 11 festivais foram ganhos por três compositores. O mais velho, Nóbrega e Sousa, funcionário da Emissora Nacional e responsável por uma quantidade impressionante de êxitos inesquecíveis nas décadas de 50 e 60, assinava a música de Sol de Inverno e Onde Vais Rio Que eu Canto (e mais tarde Sobe Sobe Balão Sobe). Nuno Nazareth Fernandes venceu com O Vento Mudou, Desfolhada e Menina, nos dois primeiros casos em momentos de decisiva renovação. E o mais novo, José Calvário, compôs as melodias de Festa da Vida e de E Depois do Adeus.
De entre os letristas, além de José Niza, autor dos versos musicados por José Calvário, apenas um ganhou mais do que uma vez. Mas não se limitou a fazê-lo. Não é exagero dizer que há um festival antes e depois da chegada de José Carlos Ary dos Santos.
Ary tinha 31 anos quando concorreu pela primeira vez ao festival, em 1969. Tinha carreira boa na publicidade e era já reconhecido como poeta. Era muito próximo de Natália Correia e começava a escrever para Amália: a primeira letra sua que ela cantou, Meu Amor Meu Amor, só seria contudo publicada no ano seguinte, no álbum Com Que Voz.
O poeta adorava a provocação. Gostava de chocar e sabia ser contundente. Mas também sabia agradar, e gostava de o fazer. E queria pôr o talento ao serviço das suas convicções. Dizia-se já comunista e participaria nesse ano na campanha da CDE (Comissões Democráticas Eleitorais), embora o seu envolvimento real com o partido viesse mais tarde.
O festival tinha tido uma lufada de ar fresco nos dois anos anteriores (1967 e 1968), no que tocava à música (Nuno Nazareth Fernandes e Pedro Osório) e aos intérpretes (Eduardo Nascimento e Carlos Mendes). Mas as letras eram pouco ambiciosas, ao contrário do que já sucedia em canções que não concorriam ao festival.
Foi bombástica a primeira participação de Ary dos Santos, ao lado do compositor Nazareth Fernandes. A vantagem que a canção deles conseguiu — e que ficou clara muito cedo — foi tão grande que já ninguém recorda o 2.º e o 3.º lugares, a enorme distância, do Duo Ouro Negro e de Valério Silva. Simone, no auge das suas capacidades vocais, foi esmagadora. E a censura — em tempo de evidente descompressão (levava apenas meio ano o consulado de Marcello Caetano) — nem proibiu um verso que inevitavelmente chocou os mais conservadores: “Quem faz um filho fá-lo por gosto!”
Mas foi mesmo isso que ela cantou?! Em alguns espectáculos na província houve quem lhe pedisse explicações pela pouca vergonha.
O Festival da Eurovisão (ganho em 1968 pelo La La La de Massiel ao Congratulations de Cliff Richard) realiza-se nesse ano em Madrid e os jornalistas portugueses embandeiram em arco depois dos primeiros ensaios. A nossa representante é considerada nas listas restritas de favoritos. Até há quem lhe vaticine vitória. Na sala, depois, tem uma das maiores ovações. Balde de água fria, o júri. A cena do costume: os países nórdicos a trocarem votos entre si, etc. Portugal, pelos vistos, não tem tramóia parecida. Os pontos não vêm. Simone fica com apenas quatro e num humilhante penúltimo lugar.
Triste o fim? Nada. Vaga de fundo em Portugal: Simone tem uma multidão à sua espera, quando chega de comboio. Uma multidão que se repete, em várias estações, muito antes da chegada a Lisboa, por isso mesmo com quatro horas de atraso! Ruben de Carvalho (que organizou e prefaciou o livro com as letras do poeta) explica esta popularidade também pela temática rural da letra, que fala a boa parte da população ainda ligada às raízes na província. E a própria RTP bate com a porta: no ano a seguir, há festival só para nós — Portugal, ofendido com a injustiça, não concorre à Eurovisão.
Tudo é combate político
Em 1970, com Canção de Madrugar, a dupla Ary dos Santos e Nuno Nazareth Fernandes prepara-se para ganhar outra vez. Para muitos, letra e música são ainda melhores do que as da Desfolhada. Mas o intérprete — o desconhecido baladeiro Hugo Maia de Loureiro, que chegara a cantar no Zip Zip — não é um profissional da velha escola. Aliás, já em 1969, Simone, decisiva, nem tinha sido a primeira escolha — Ary tinha pensado primeiro em vozes menos marcadas.
E o estreante perde, numa votação que chega a ser dramática, levando zero pontos em algumas cidades ou, pelo contrário, uma pontuação em massa noutras, que dão zero ao seu adversário principal, o intérprete de Onde Vais Rio Que Eu Canto, Sérgio Borges. Este tem uma noite arrebatadora, uma interpretação para ganhar. E Hugo Maia de Loureiro não. Mas tinha sido imprudência imaginar vitórias fáceis sobre uma raposa velha como o compositor Nóbrega e Sousa. E, finalmente, coisa de que pouco (ou nunca) se falou, um outro veterano, o orquestrador Joaquim Luís Gomes, fora muito mais eficaz em abrir espaço para as palavras e a voz do que Thilo Krassman, mais novo, com ideias boas, mas pouca disciplina no arranjo da Canção de Madrugar.
A polémica que se segue é a mais dura. Os vencedores são identificados com o antigamente, se não mesmo com o Regime. Sérgio Borges — ainda por cima sem a compensação de uma presença na Eurovisão — torna-se persona non grata para boa parte da imprensa. O país está dividido, a esquerda domina como fazedora de opinião, prevalece a ideia de que tudo é combate político e, à falta de alternativa enquanto dura o Estado Novo, o festival é uma óptima arena para afrontamentos.
E Ary jura vingança. Regressa em 1971 para ganhar. Sem contemplações. Escreve uma letra onde não cabem nem as rupturas da Desfolhada — “quem faz um filho fá-lo por gosto” — nem o subtexto da Canção de Madrugar — um evidente hino à liberdade e a uma realidade oposta à do Regime moribundo. Nuno Nazareth Fernandes, eficientíssimo, faz de novo a música, de Menina (do Alto da Serra). Não há baldas na escolha da competentíssima Tonicha para cantar e do consagrado orquestrador, o espanhol Augusto Algueró. Já se sabe quem ganhou. Paulo de Carvalho, com Flor Sem Nome, de José Calvário e José Niza, fica em segundo lugar. Para os três, não acaba ali o festival.
E depois veio o Adeus
No ano seguinte — ano em que o Regime apresenta a recandidatura (de vitória assegurada) de Américo Thomaz à Presidência da República e com ela o fim das ilusões de liberalização, que vinham murchando ao longo dos últimos anos —, duas letras de Ary, para a voz de Fernando Tordo, não passam no júri de selecção. Mas o novo espírito que Ary trouxe reflecte-se em muitas letras, inclusive na que José Niza escreveu, para a canção vencedora na voz de Carlos Mendes: “Que venham todos de vontade/ sem me lembrarem de saudade/ venham os novos e os velhos/ mas que nenhum me dê conselhos.”
Para o festival de 1973, Fernando Tordo, concorrente vencido ao longo de todos os quatro anos anteriores, mas que chegara a brilhar em 1971 (3.º lugar) com uma música sua e letra de Ary, Cavalo à Solta, traz agora uma canção inesperada: mesmo que cante que “toureamos ombro a ombro as feras”, o tom é brincalhão — não há provocações evidentes nem epopeia. Em vez disso, o humor.
Ruben de Carvalho conta que foi Tordo a ter a ideia de tomar a tourada como tema. E Tordo quem fez primeiro a música (Ary gostava de escrever a partir da música) e deu a Ary um glossário dos termos da corrida: sol ou sombra, barreiras, o inteligente, chocas e capotes... Depois, o poeta, publicitário experimentado nas metáforas, fez o que se sabe. Tordo cantou bem e foi expressivo nos gestos. Mas venceu Paco Bandeira por pouco (quatro pontos só). Logo à saída do Teatro Maria Matos, houve manifestações do mundo da tauromaquia, que resolveu ofender-se. Ameaçaram com um processo. E toda esta tourada deu à Tourada a melhor das vitórias: uma estocada funda num meio conservador — que melhor símbolo se podia arranjar do Regime?
E Depois do Adeus — apesar da concorrência de José Cid, que a solo ou com os Green Windows colocou três canções (que fariam êxito) nos cinco primeiros lugares — garantiu finalmente em 1974 a vitória que Paulo Carvalho, reconhecido por muitos como uma das melhores vozes (ou mesmo a melhor), já merecia há muito. Mas o passo seguinte da cantiga não seria a Eurovisão: antes — e mais importante — o trecho virava uma das senhas dos oficiais revoltosos na madrugada de 25 de Abril.
E depois... lá fora nenhum artista português construiu uma carreira a partir do festival. Fizeram-se versões em línguas estrangeiras de várias cantigas. Mas, ao contrário da Tourada que o Tordo cantou, o festival nunca deu “lucros aos milhões”. Mas era prestigiante e as editoras mais activas queriam ganhar. Se de aposta a longo prazo na carreira dos artistas se tratou, não foi bem apostado: naqueles primeiros 11 anos, ou se apresentaram consagrados a quem a derrota embaraçou ou novos que passado pouco tempo mudavam de editora. Em Dublin, mais tarde, em 1981, um quadro da RTP dizia: “Isto é preciso é não ganhar... já viu a bronca se tivéssemos de organizar o Festival da Eurovisão em Portugal?!”
E depois de Abril ganhou primeiro o discreto Duarte Mendes — que já levava no bucho quatro participações, mas nunca o poder apresentar-se como capitão de Abril; em 1976, na pacificação pós-PREC, Carlos do Carmo, consagrado, de simpatias comunistas, intérprete único pré-escolhido, venceu com letra do socialista Manuel Alegre as do comunista Ary, que de novo estavam nas melhores canções; veio a vez dos Amigos, com Tordo e Paulo e outros; os Gemini, em 1978, com Tó Zé Brito, Mike Sergeant e duas futuras Doce; e, a fechar a década, o balão de Manuela Bravo, num ano com eliminatórias por onde andou um jovem guitarrista chamado Rui Veloso — mas não voltou; as grandes novidades da década seguinte não iam passar por ali.
David Ferreira é autor dos programas A Cena do Ódio e A Contar, da Antena 1