Uma conspiração de homens de negócios
A “Primavera russa da Crimeia” foi também uma conspiração de homens de negócios. Empresários ligados à Rússia sentiam-se discriminados pela corrupção ucraniana. Agora, um novo grupo de oligarcas, que patrocinou o golpe e o referendo, assume o poder na região. O referendo ainda não se realizou, mas já se fazem os negócios.
“Diga-me: o homem mais esperto de Portugal consegue ganhar mil milhões de dólares num ano, partindo do zero?" Provavelmente não. “Pois na Ucrânia é possível. O filho do Presidente Ianukovich ganhou mil milhões num ano. Explicação do pai: ele trabalha muito, de dia e de noite.” Era assim, segundo Michailov, o mundo dos negócios na Ucrânia: quanto mais próximo do Presidente, mais dinheiro. O que dificultava um pouco a vida aos empresários de origem russa operando na Crimeia.
“Em cada negócio que tentávamos fazer, enviavam 40 fiscais de Kiev, para nos pôr problemas. Inspeccionavam tudo, inventavam leis e burocracias, para nos paralisar. O objectivo, claro, era extorquir subornos. O sistema era tão corrupto, que não valia a pena mexer um dedo.”
Evgueni Michailov trabalha sobretudo no sector do turismo. O potencial da Crimeia é imenso, mas está por explorar. De facto, um passeio de carro pela zona costeira, de Sebastopol a Balaclava, permite observar uma paisagem de hotéis decadentes, edifícios em ruínas e estradas esburacadas, com um fundo de mar azul-escuro e transparente e falésias brancas. Com tal esplendor da Natureza, estranha-se a ausência de grandes investimentos em estruturas turísticas.
“Era impossível”, explica Michailov. “As leis mudavam todos os dias. Inventavam novos impostos, exigiam novas licenças. Os burocratas de Kiev viviam para fazer dinheiro à custa dos homens de negócios.” Não de todos, ressalva. O grupo próximo do poder prosperava. Os outros eram obrigados a “pagar subornos à polícia, aos serviços secretos, aos burocratas". "Não há nenhuma empresa na Ucrânia que não tivesse de os suborna.r” Incluindo as de Evgueni Michailov? Silêncio. Um sorriso de ironia. “Não, eu era o único que não pagava. É por isso que estou pobre.”
As mesas do restaurante estão ocupadas por políticos, empresários, oligarcas, todos de fato e gravata. Discutem em surdina nos seus pequenos grupos, mas frequentemente estendem as conversas para a mesa ao lado. A de Michailov é das mais concorridas. Em breve se nos junta o presidente da câmara de uma cidade vizinha, Feodosia, e outro empresário da área do turismo.
Havia portanto um grupo de empresários privilegiados, ligados ao governo ucraniano, e os outros, que se sentiam prejudicados. Se o que dividia uns e outros era o facto de serem ucranianos ou russos, Michailov não confirma. Mas pelos exemplos que dá, parece ser o caso. Pelo menos na sua percepção.
Nas primeiras semanas da revolta em Kiev, Michailov apoiou a Maidan. Mas depois percebeu que os seus líderes pertenciam aos mesmos círculos do poder. Nada ia mudar para melhor, na perspectiva dos empresários russos. Talvez para pior, o que se confirmou. “Os líderes que chegaram agora ao poder fazem parte do sistema de corrupção. Por isso nós tínhamos de agir. Era a altura. Se não fosse com o referendo, seria de outra maneira qualquer.”
Michailov apoiou a “Primavera da Crimeia”. Foi um dos seus protagonistas, juntamente com Serguei Aksionov (actual primeiro-ministro), Vladimir Constantinov (presidente do parlamento) e outros empresários seus amigos. Fizeram-no em coordenação com Moscovo, mas a iniciativa foi deles, diz Michailov, que gastou do seu bolso muito dinheiro com a “Primavera”.
“Sim, eu dei dinheiro para o movimento. Nasceu do povo, de forma espontânea, precisavam de apoio. Eu e outros empresários patrocinámos tudo isto.” Só não diz com quanto. “Há quatro perguntas que não se fazem a uma pessoa: qual a sua religião, com que mulher anda, de quem recebe dinheiro e a quem o dá.”
Zelinski Kostiantin ainda não disse nada desde que se sentou à mesa. Está à espera da sua vez, para falar com Michailov. Tem um projecto e quer ajuda. A sua agência turística organiza um festival de jazz em Koktebel, na costa leste, perto da península de Kerch, vizinha da Rússia. Acontece que Michailov é proprietário de um hotel na mesma cidade. Outra coincidência: é deputado da Crimeia.
Tudo conjugado promete um evento em grande, durante cinco dias, na primeira semana de Setembro. “Eu vou ajudar este homem, porque ele merece”, declara Michailov. Kostiantin sorri com tímida reverência. “A razão de não haver mais investimento na Crimeia é o facto de o turismo ser sazonal”, diz Michailov. “Mas não queremos que as pessoas venham apenas de Maio a Setembro, para nadar e apanhar sol. Queremos visitantes todo o ano. Por isso vamos apostar em projectos culturais, como este festival, e sanatórios para tuberculosos, em Ialta, estabelecimentos de águas termais…” É aqui que entra o autarca de Feodosia, que também veio pedir apoio para um projecto seu: termas.
“Em Feodosia mando eu”, diz Michailov, colocando o braço sobre os ombros de Kostiantin. “Ele é o meu número dois. Com a minha supervisão, está a organizar o referendo na cidade. E depois temos um grande projecto termal na região, que vai atrair turistas todo o ano, principalmente da Rússia. Antes, isto não seria possível.”
Com todos os investimentos planeados, a região vai dar um grande salto para a prosperidade, diz o deputado/empresário. Haverá mais empregos, bem pagos, os salários serão equiparados aos da Rússia. “Um professor aqui ganha 250 dólares por mês. Na Rússia, 800 ou 900. Um médico ganha 300 dólares na Ucrânia, 1200 na Rússia. Não é?” Volta-se para uma mesa ao lado: “Quanto ganha um médico?”
Os três russos sentados na outra mesa confirmam. São deputados regionais de Krasnadar e estão em Sinferopol a convite do novo governo. “Somos convidados do governo da Primavera da Crimeia”, diz um deles, Aleksander Vaslevn. Entrega um cartão-de-visita com uma fotografia sua em equipamento de motocross, montado numa trailler de 250 cm3. “A minha empresa organiza torneios”, explica. “Estamos aqui para montar um grande projecto conjunto com os amigos da Crimeia.”
Aproximam-se da nossa mesa e falam de cadeias de hotéis, percursos turísticos, trajectos dos ferries na baia do Mar de Azov. “Está a ver? É muito fácil para nós falar com os russos”, diz Michailov. “Se fossem franceses, só poderíamos falar do presente. Com os russos podemos falar do passado, porque é comum e nos entendemos. É uma questão de cultura, e também de genética. Nos russos posso confiar, porque são pessoas de carácter."
"[Os deputados de Krasnadar, tal como outros políticos, de Moscovo, e empresários russos], estão cá para nos ajudar a resolver os problemas, e para lançar investimentos conjuntos.”
Os negócios de Michailov sempre estiveram mais ligados à Rússia do que à Ucrânia ou à Europa. “A maioria dos turistas da Crimeia vem da Rússia. Os europeus não querem vir para cá. Todos os meus negócios são com a Rússia. E a União Europeia não me traz nenhuma vantagem. Tenho interesse em ligar-me ao parceiro mais poderoso, que é a Rússia.”
A possibilidade de também haver corrupção na Rússia não preocupa Michailov. “Os russos são meus amigos. Com eles entendo-me bem. E confio totalmente em Aksionov e Constantinov. São homens de negócios como eu, nunca me irão pedir subornos. Eles também sofreram a corrupção de Kiev, não vão fazer a mesma coisa. Agora nada pode impedir o desenvolvimento, porque estamos entre amigos.”
Dias antes deste encontro faláramos com um empresário ucraniano, Serguei Kovalski, dono de uma cadeia de clubes nocturnos em cidades ucranianas. Tinha sido nomeado líder da Maidan na Crimeia, presumivelmente na esperança de que os seus meios financeiros ajudassem o movimento contra a anexação russa.
Rodeado de guarda-costas, no seu escritório nos bastidores do luxuoso clube de karaoke Broadway, Kovalski estava em choque por o seu pai ter sido raptado na véspera pelas unidades de autodefesa pró-Rússia. Toda a família tinha já fugido para outras regiões da Ucrânia, e Serguei temia pela sua sorte.
Dias depois surgiu a notícia de que tinha desaparecido. Na Broadway ninguém sabia dele. A Maidan elegeu novo líder, um tártaro. Era impossível ligar para o número de telefone de Serguei Kovalski. Uma operadora dizia que estava desligado, mas após muitas tentativas, conseguimos. "Está tudo bem consigo?", perguntámos.
“Sim”, respondeu uma voz. Mas não era a dele.