Em Dezembro de 2012, um dos mais populares rappers portugueses, Valete, deu um concerto no Campo Pequeno em Lisboa. Na altura entrou em contacto com General D para este participar na celebração. Aquele recusou. Mas ele não esqueceu o propósito do convite. “É um dos pioneiros, mas para as gerações mais novas é inexistente. Queria apresentá-lo aos mais novos. Faz falta em Portugal documentar o início. Queria celebrar o General D com a minha geração e mostrar aos mais novos que faço rap hoje, em parte, por causa dele.”
A geração de Valete, a segunda geração do rap português da qual fazem também parte Sam The Kid, os Dealema ou Chullage, seguiu-se à de General D, Boss AC, Black Company, Zona Dread, Da Weasel, Ithaka ou Mind Da Gap. “Comecei a ouvir hip-hop português com o Rapública e com General D”, lembra Valete. Para ele, General D não era apenas “um dos impulsionadores do rap”, funcionava também como “a voz da comunidade negra”, afirma. “Como miúdo negro, ele era importante para mim. Era o nosso líder.” O seu discurso de consciência social marcaram-no: “Foi o primeiro rapper português mesmo militante. O primeiro rapper de intervenção. A música e o seu discurso tinham um propósito. E era muito eloquente. Tinha uma causa e isso diferenciava-o.”
Histórias
Quem acompanhou esses anos iniciais do rap em Portugal, foi o artista, cantor e surfista americano Darin Pappas. Chegou a Lisboa em Julho de 1992, da Califórnia, fotografando muitos dos rappers da época – são dele as fotos de General D aqui incluídas –, ao mesmo tempo que iniciou o projecto Ithaka e deu a voz a So get up, o tema dançante que deu a conhecer os Underground Sound Of Lisbon. Em Los Angeles estava profundamente envolvido na cena hip-hop local como fotógrafo. O género era a banda-sonora da sua vida desde os treze anos. Quando chegou a Lisboa, o quase deserto.
A sua primeira recordação de General D data do início de 1993. “Lembro-me dele, na rua, em frente aos Três Pastorinhos, a improvisar no meio de um círculo de amigos. Não fazia ideia do que estava a cantar, mas era bombástico. De imediato aproximei-me dele para ver se precisava de fotos.”
Os Ithaka, com Darin Pappas e Pedro Passos, estrearam-se em 1995 com o álbum Flowers And The Color Of Paint e ainda hoje o americano olha para a fase portuguesa como algo de inesperado na sua vida. “Tinha apenas um livro cheio de histórias e o Pedro uma fantástica colecção de discos para podermos sacar samples.” E assim nasceu o álbum. “Recordo-me de ter pedido à editora Movieplay 100 álbuns para promoção. Deram-me 10. Uma dessas cópias acabou num filme de surf da Quiksilver com Kelly Slater, o maior surfista da história, e a outra nas mãos do realizador de cinema Antoine Fuqua. Ele tinha uma canção do Snoop Dogg preparada para entrar numa cena do seu filme The Replacement Killers, mas depois de ouvir Escape from the city of angels percebeu que aquela é que era a canção.”
O filme contava com Chow Yun Fat, estrela de Hong Kong. “A banda-sonora nunca chegou a sair na América, mas um dia conheci um miúdo chinês em Nova Iorque, para quem aquela canção era a favorita”, conta. “Mostrou-me a plataforma de downloads ilegais que utilizava e já havia sido descarregada 600,000 vezes, a maior parte na China. E estamos a falar de uma plataforma apenas. É uma loucura. Os filmes são um poderoso meio difusor a este nível, sendo exibidos em mais de 200 países. Mais de mil milhões de pessoas, ou mais, ouviram essa canção. É provável que seja a canção hip-hop gravada em Portugal mais ouvida internacionalmente.”
História com algumas semelhanças à de Darin Pappas é a do artista e sociólogo António Contador. Quando chegou a Portugal, depois de 18 anos em Paris, na alvorada dos anos 1990, não encontrava ninguém com o seu quadro de referências, o hip-hop. Ao telefone, de Paris, onde voltou a viver nos últimos anos, diz-nos que se lembra de trocar discos de funk e hip-hop na Feira da Ladra pelos de rock, que para ele era um universo desconhecido. Porquê? “Sentia-me na obrigação de ir de encontro ao que as pessoas ouviam em Portugal – Lou Reed, Velvet Underground ou Tom Waits, esse tipo de coisas – para poder comunicar com elas.”
Em 1997, ele e o também sociólogo Emanuel Lemos Ferreira, escreveram Ritmo & Poesia – Os Caminhos do Rap (Assírio & Alvim), a primeira obra portuguesa que reflectia sobre o fenómeno a nível global e local. O livro havia sido precedido por um documentário (Tá-se Bem! Geraçon Rap), feito entre 1994-95, que se encontra no YouTube, dividido em diversas partes.
Hoje quando olha para o percurso dos muitos agentes que foi conhecendo nesse período sente reconforto. “Em termos de enquadramento sociológico, a maior parte das pessoas que conheci nessa altura – negros e brancos portugueses ou a viverem em Portugal há muito – integrou-se bem na sociedade.”
Na sua opinião passaram por uma fase de emancipação e proclamação de identidade através do hip-hop e, hoje, uns continuam a fazer música, outros deixaram de o fazer, uns vivem em Portugal e outros no estrangeiro. “Ou seja, na maior parte dos casos existiu uma boa integração profissional e cultural e, regra geral, houve imenso prazer em viver aquele momento e fazer parte de qualquer coisa que estava a nascer. E Portugal, umas vezes melhor, outras nem tanto, como é normal, integrou tudo pacificamente.”
Do ponto de vista do enquadramento na indústria cultural e musical portuguesa, opta por uma visão realista. Apesar do impacto global da cultura hip-hop, em Portugal as carreiras bem-sucedidas e os concertos com grandes nomes ligados ao género ainda são diminutos. “São poucos os que conseguem viver da música, mas isso é generalizado, não é exclusivo do hip-hop. O mercado português é exíguo. Portugal é uma realidade comercial pequena. Para um músico poder viver apenas da música tem de ter uma abrangência gigante. Não é apenas uma questão de insistência. Por vezes o contexto não dá para a mais e a realidade impõe-se.”
Construir do silêncio
A antropóloga Teresa Fradique, que em 2002 escreveu Fixar O Movimento – Representações da Música Rap em Portugal (Dom Quixote), diz que aquilo que os primeiros rappers pareciam estar a fazer era “construir as suas vidas a partir de uma sociedade cheia de vazios e silêncios. E fizeram-no com coragem, vitalidade e inteligência. Talvez esse vazio de que falo e que lhes era alheio os tenha atraiçoado num primeiro momento, retirando-lhes o suporte, a plataforma sólida para assentarem as suas experiências, os seus movimentos. Devorou a sua frescura para a domesticar e devolver como fenómeno enquadrado à medida das vontades e dos lugares para eles reservados. Mas o movimento hip hop soube responder à altura, ainda que demorando alguns anos, revelando uma maturidade própria. Depois dos primeiros tempos de grande visibilidade (de que o Rapública fez parte) o movimento voltou a uma prática mais underground para surgir mais forte do que nunca ao longo da primeira década do século XXI dando solidez ao que hoje reconhecemos como Hip-Hop Tuga”.
Hoje é uma realidade heterógena. Seja como produto artístico, com muitos nomes e editoras independentes a afirmarem-se a partir de 2000 em Portugal, sem que seja possível delimitar um traço comum (Orelha Negra, Halloween, Capicua, DJ Ride ou Regula), seja pela forma como o fenómeno é apreendido pelo conjunto da sociedade. Se por um lado a realidade hip-hop parece assimilada, por outro ainda existe quem olhe a tipologia como música dos excluídos, numa sociedade portuguesa com algumas dificuldades em representar e integrar a diferença.
A verdade é que o surgimento do rap em Portugal constituiu um dos mais fascinantes fenómenos da cultura popular do contexto pós-colonial português, diz Teresa Fradique. “Pela sua dimensão artística e performativa, pela forma como os rappers, através do seu estilo musical, conseguiram construir efectivamente um espaço cultural original, criar novas relações e novas identidades para o que era também um nova condição histórica e social da sociedade portuguesa. Souberam não só criar espaço, mas ocupá-lo. E isso é raro, importante e corajoso.”
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