A biologia sintética e a imortalidade humana
Não há razões teóricas que impeçam os organismos vivos de poderem evoluir para a imortalidade.
Em 2010, uma equipa de cientistas dirigida por Venter conseguiu sintetizar o genoma da bactéria Mycoplasma mycoides, a partir do seu código genético arquivado num computador, e introduzi-lo na bactéria Mycoplasma capricolum, cujo DNA tinha sido previamente removido. A nova bactéria sintética, a que se deu o nome de Mycoplasma laboratorium, passou a viver e a reproduzir-se milhares de milhões de vezes controlada pelo novo genoma.
Na altura, Venter afirmou “ser o primeiro organismo vivo cujos pais são um computador”. Surgiu assim um novo domínio da ciência e da tecnologia, designado “genómica sintética”, ou, de forma mais geral, “biologia sintética”, que abre perspectivas inimagináveis de manipulação e melhoramento de organismos vivos, incluindo os humanos.
Note-se que não se está a construir uma célula viva directamente a partir dos seus constituintes químicos, mas a criar formas de vida novas a partir das existentes utilizando DNA sintetizado. Começa-se por sequenciar o genoma de uma determinada espécie biológica para colocar o seu código digitalizado num computador. Depois usa-se o computador para manipular a informação genómica e desenhar novos genomas que se podem introduzir por meio de processos biotecnológicos em células de outro organismo (ao qual se retirou previamente o genoma) para produzir um organismo novo.
Com esta tecnologia, o biólogo transforma-se num engenheiro que codifica e constrói novas formas de vida com propriedades específicas para satisfazer os mais diversos objectivos: protecção e melhoria da saúde humana, sustentabilidade alimentar e energética, remediação ambiental, obtenção de recursos hídricos ou ainda como arma de guerra. Vários laboratórios de biologia sintética, incluindo o de Venter, estão empenhados em sintetizar bactérias que irão absorver o excesso de CO2 e de outros gases com efeito de estufa presentes na atmosfera, para mitigar as alterações climáticas, ou produzir combustíveis, tais como butano, propano e hidrogénio, a partir de moléculas orgânicas comuns, tais com os açúcares. Há, pois, razões para afirmar que entrámos numa época pós-darwinista de “evolução dirigida pelo homem”.
Reformulando numa outra linguagem, estamos a assistir ao nascimento da tecnologia de “impressão 4D”, ou seja, em quatro dimensões. A impressão 2D é a que fazemos diariamente quando premimos o comando de impressão do nosso computador para produzir uma cópia em papel de um documento digitalizado. Na impressão 3D aparelhos carregados de plástico, metal, grafite, matérias comestíveis e muitas outras são utilizados para construir produtos tridimensionais a partir de planos gerados num computador. Finalmente, na impressão 4D produzem-se sistemas com actividade própria, que, por exemplo, se autoconstroem ou auto-reproduzem. A biologia sintética, ao construir a partir dos elementos essenciais da vida, ou seja, do ADN, é a via privilegiada para a impressão 4D.
Actualmente, a possibilidade de obter novos vírus e bactérias está a ser aproveitada pela medicina para vários fins, por exemplo, a criação artificial de vírus potencialmente geradores de pandemias catastróficas para depois procurar descobrir o modo de os combater. Em 12 de Setembro de 2011 Ron Fouchier, do Centro Médico Erasmus de Roterdão, anunciou que tinha descoberto a forma de modificar o vírus da gripe H5N1, que afecta quase exclusivamente as aves, num vírus que afecta os mamíferos e se transmite facilmente entre eles. Pouco depois, Yoshihiro Kawaoka, um virologista da Universidade de Wisconsin, anunciou que tinha repetido a experiência de Fouchier. O perigo de o novo vírus da gripe humana sair do laboratório e constituir uma terrível ameaça para a saúde pública gerou uma controvérsia efémera e a receita para a sua fabricação acabou por ser publicada na íntegra na Science e na Nature por Fouchier e Kawaoka em 2012.
Estamos perante um novo domínio de investigação de uso dual (dual-use research of concern) em que os resultados da pesquisa podem ser usados para o bem comum ou para a agressão violenta e o terror. O uso dual apareceu primeiro de forma mais explícita na área da química, depois estendeu-se à física, especialmente com a pesquisa nuclear, e finalmente à biologia. As vozes que advertem para os perigos da investigação de uso dual acabam sempre por ser silenciadas. Aquilo que a ciência e a tecnologia conseguem inventar, por mais tenebrosas que sejam as suas potenciais aplicações e consequências, acaba sempre por realizar-se ao abrigo de legislação de conveniência e segurança mais ou menos porosa.
As possibilidades mais surpreendentes da conjugação da biologia sintética e da biotecnologia avançada com as tecnologias da informação e computação, e em especial com o big data, encontram-se nas tentativas de human enhancement, que poderá traduzir-se por “melhoramento humano”. A ideia mestra é a de que os humanos não estão no final da sua trajectória evolutiva e que podemos substituir a lenta evolução darwiniana por uma evolução autodirigida muito mais rápida. Em lugar de uma selecção natural, teremos uma selecção dirigida.
É evidente que este programa gera uma extensa gama de questões de natureza ética e política sobre as quais há pontos de vista divergentes e uma extensa bibliografia. Entretanto, enquanto se discute, há uma aceleração nos avanços científicos e tecnológicos, alguns deles notáveis. Em 15 de Maio de 2013, Shoukhrat Mitalipov e o seu grupo de investigação relataram na revista Cell terem conseguido pela primeira vez produzir células estaminais embrionárias humanas por meio da clonagem. A demonstração da viabilidade desta metodologia abre perspectivas extraordinárias de cura de doenças tais como Parkinson, diabetes e cancro com terapêuticas baseadas na clonagem.
No futuro, algumas elites dos países mais avançados terão uma medicina personalizada, ou, se se preferir, uma medicina de precisão, baseada na digitalização de modelos moleculares dos genes, proteínas e comunidades microbianas de cada pessoa. Outro objectivo crucial que se pretende atingir nos próximos anos é a cartografia completo das ligações entre os neurónios do cérebro e das suas funções específicas. Este conhecimento irá permitir fazer implantes nos lugares certos do cérebro com o fim de o estimular para aliviar determinadas doenças, como Parkinson e epilepsia, ou para aumentar as capacidades sensoriais, cognitivas e psíquicas das pessoas.
Sabemos já que será provavelmente possível nos próximos anos aumentar em cerca de 30% a esperança de vida humana em condições de boa saúde por meio de técnicas de intervenção biomédica. As terapias de extensão da vida usam uma combinação de tecnologias baseadas no uso de células estaminais e de travagem ou mesmo inversão do processo de envelhecimento ao nível celular.
Não há razões teóricas que impeçam os organismos vivos de poderem evoluir para a imortalidade. Atenção, não confundir esta imortalidade biológica com a invulnerabilidade a outros tipos de imortalidade: estes imortais podem morrer em acidentes, guerras ou com doenças infecciosas, tais como os deuses gregos Esculápio e Pã.
Há um exemplo fascinante de imortalidade num ser vivo multicelular. É o caso da pequena medusa Turritopsis dohrnii, descoberta no Mediterrâneo e presente também no litoral do Japão, que na forma adulta e sob acção de stresses ambientais, pode inverter o processo de envelhecimento e retornar à forma de pólipo, evitando assim a morte. Apesar do seu ciclo de vida imortal, a Turriptosis pode desaparecer na boca dum peixe ou sucumbir com uma doença. A vida surpreende sempre!