Descansem: o sonho comanda (mesmo) a vida

São perigosos os discursos dos Calimeros e das Deolindas que pululam por aqui. Querem-nos condenar ao fado dos dias tristes, ao mesmo tempo que nos empurram para uma sociedade dividida entre os que podem e outros, os que devem

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“Eles não sabem que o sonho / é uma constante da vida / tão concreta e definida / como outra coisa qualquer”. Começa assim “A Pedra Filosofal”, de António Gedeão (ou Rómulo de Carvalho, para quem não concebe que o “eu” se renova e redescobre), um dos maiores poemas portugueses do século XX.

Estes são tempos perigosos para se estar vivo. Como se não bastasse o desgoverno a que nos condenaram (mais ou menos desde sempre), ainda temos que lidar com quem nos quer empurrar para o fatalismo da condição menor. Então agora querem-nos fazer crer que não vale a pena sonhar?

A maravilha da democracia é que podemos dizer tudo o que queremos, mesmo os maiores disparates, sem que nos aconteça nada de especial, a não ser meia dúzia de insultos. Mas a democracia é, acima de tudo, o regime que nos permite sonhar. Que nos obriga a fazê-lo.

À liberdade está inerente o direito de nos transcendermos, de desejarmos sermos mais do que aquilo que somos, de tentarmos e falharmos e voltarmos a tentar e voltarmos a falhar e, estúpidos, teimosos e orgulhosos, repetirmos este ciclo vezes sem conta. Se acção é consequência, então desejar é causa. Ao sonho só não chega quem dele não sente falta, porque sonhar não é um fim em si mesmo, mas o princípio de uma vontade de superação.

São perigosos os discursos dos Calimeros e das Deolindas que, por estes dias, pululam por aqui. Uns e outros querem-nos condenar ao fado dos dias tristes, ao mesmo tempo que nos empurram para uma sociedade dividida entre os que podem e outros, os que devem. São também, e é isto que nos deve agarrar, retóricas produzidas por quem, do alto de um pedestal construído por si próprio, olha para baixo e, vendo a ralé, não distingue cores e formas, porque são eles e nós.

O convite ao feudalismo, de uma sociedade de servos e senhores, só nos pode inspirar um sentimento de pena, muito mais do que repulsa. Sintamos, pois, compaixão por quem esconde as suas fragilidades num discurso de proclamação umbilical. Querem que não sonhemos — que é uma forma cobarde de dizerem que bom mesmo era não pensarmos — porque, no fundo, têm medo que, fazendo-o, percebamos aquilo que já se tornou evidente: não há nada neles que nos convenha.

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