Deles os dois

Esta não é uma crónica de emigração, sem deixar de o ser. Não é um texto de época, embora cumpra bem o papel. É uma carta de amor ao João e à Madalena. É neles o meu Natal

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Reuters

Vejo-os da secretária, sentados no sofá. Ele, atento à telenovela do canal português pirateado, não ouviria mesmo que o chamasse. Ela, de olhos fechados, responderia estar apenas a descansar a vista, se por acaso lhe perguntasse.

Aqui estamos, finalmente. Estamos juntos na cidade que tomei por empréstimo – e à qual ainda me hei-de referir sem urgência. Juntos, num reencontro com data escolhida e tão desejado, como só se desejam as coisas que se querem muito.

Sobre eles, saibam que são o que de melhor conservo. Nunca os vi, em consciência, prejudicar alguém. Retenho o que mais os distingue e esforço-me por chegar lá perto. Do meu pai, a razão das palavras certas, a ponderação e a capacidade de perdoar. Da minha mãe, a persistência dos que nunca baixam os braços, a coragem e a determinação. De ambos, o carácter forte e inviolável. Se me deixassem, cansar-vos-ia com o tanto que tenho para dizer. Não o vou fazer. Resumo-vos apenas o que se passa: os meus pais estão aqui, tenho-os este ano para o Natal.

O meu Natal é de cheiros. O cheiro do bacalhau no forno (felizmente com natas e não com couves), do rolo de carne, da lenha húmida — e do fumo que enchia a sala — dos sonhos de abóbora, das azevias de grão, do bolo rei e do açúcar do leite creme, acabado de queimar. É do cheiro da sala fria, na madrugada de dia 25 – quando finalmente me deixavam abrir as prendas — da caldeirada de cabrito, da canela a decorar a aletria e da canja, ao jantar.

O meu Natal é de cores. Dos embrulhos de todos os tipos, da toalha vermelha, dos guardanapos com estrelas douradas, das luzes da árvore, das cores sóbrias do presépio.

Mas o meu Natal é essencialmente de pessoas. Da avó Minda – haveriam de gostar dela – da Teté, da tias Lena e Luísa, dos tios Manuel e Luís, das primas Cláudia, Inês e Dulce, do mano Hugo, do pai e da mãe. Dos nomes que, à volta das mesas – no plural porque nós, os gaiatos, comíamos sempre ao lado da mesa grande – enchiam a casa de vozes sobrepostas.

Os meus pais, que agora se levantam e anunciam que vão para a cama, sem desconfiar que lhes escrevo os passos, são a variável mais constante da minha vida. Nem sempre estou à altura. Sou bruto, rude e temperamental. Indelicado, indiferente e até mal criado. Abro a boca e digo coisas que deveria calar. Mas caramba, tê-los, ainda, é sentir que, se me perder — e tantas vezes dou por mim sem saber o caminho – há um lugar ao qual posso sempre voltar.

Esta não é uma crónica de emigração, sem deixar de o ser. Não é um texto de época, embora cumpra bem o papel. É uma carta de amor ao João e à Madalena. É neles o meu Natal. Boas festas. 

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