Vincent Moon e o mundo para além da La Blogothèque

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Vincent Moon é sinómino de La Blogotheque, o canal de vídeos que desde 2006 nos ofereceu uma outra forma de olhar a música pop filmada. Músicos e bandas num cenário pouco habitual: uma rua, uma praça, um beco, qualquer local que permitisse aos sons inscreverem-se no espaço envolvente. Os Concert à Emporter tornaram-se uma ideia recuperada mundo fora, assumindo diversos formatos inspirados naquela ideia inicial – basta pensarmos, em Portugal, no arquivo A Música Portuguesa a Gostar Dela Própria.

Mas Vincent Moon, nascido Mathieu Saura em Paris, em 1979 (encontrou o pseudónimo num dos contos de “Ficções”, de Jorge Luís Borges), fotógrafo tornado cineasta, é hoje bem mais que “La Blogotheque” – de resto, afastou-se do projecto há alguns anos. Na base do seu trabalho, mantêm-se os fundamentos. “[Desde o início] Tinha uma vontade claramente definida de experimentar com os formatos e expandir o máximo possível o entendimento do que é ‘cinema + música’, tentando inventar uma nova equação e construir um formato mais igualitário, quase num sentido proletário, entre os dois meios”. Na sua cabeça, passeavam-se imagens de Tarkovski e do filme Step Across the Border (1990), dedicado a Fred Firth e realizado por Nicholas Humbert e Werner Penzel. E a certeza de que o trabalho teria que ser desenvolvido através de “tecnologias lo-fi” e em regime de acesso livre ao público.

Vincent Moon trabalha de forma independente, recusando estruturas de produção profissionais, e disponibiliza o seu trabalho online, gratuitamente. Um gesto político, certamente. Discorda sem discordar. “Deixo a cada um a interpretação”, escreve. “Na minha opinião, tudo é uma afirmação política. A forma como te vestes, como falas, até a forma como caminhas na rua. É a erupção do político, uma visão total da vida, que torna o mundo tão excitante – no sentido em que questiona a capacidade de sermos coerentes em todas as dimensões da nossa existência”.

No momento em que é entrevistado por email pelo Ípsilon, antecipando a sua presença em Lisboa (Galeria Zé dos Bois, 1 de Março, 22h, 8€, seguido de DJ set de DJ Quesadilla) e no Porto (Maus Hábitos, 2 de Março, 18h, 5€), tem todo um outro raio de acção. O universo da música popular urbana ocidental, de que resultaram a série From ATP, registo do festival inglês All Tomorrow’s Parties, concentrado nos músicos e no seu contexto, em palco e fora dele, ou An Island, misto de ficção e documentário inspirado e protagonizado pelos dinamarqueses Efterklang, quase lhe parece hoje uma memória distante.? O resto que existe

Quando, sábado e domingo, apresentar, contextualizar e discutir excertos da sua videografia, ouviremos o homem que, desde há cinco anos, viaja mundo fora, do Brasil ao Vietname, da Colômbia a Etiópia, da Grécia à Ucrânia. Como se, depois de explorar aquilo que a música pop tem para oferecer e depois de a recolocar, enquanto imagem projectada em vídeo, num outro lugar, virasse a sua atenção para o resto que existe. Tudo nasceu de um acaso pouco simpático. “Há cinco anos deixei Paris e mudei-me para Nova Iorque, o que não é o fim do mundo em termos de pesquisas musicais. Mas a rapariga pela qual me mudara deu-me com os pés poucas horas depois de ter aterrado”, explica. Sem casa fixa onde morar, entregou-se à viagem. Chegando a tantos novos lugares e pesquisando a música que deles emanava, começou a ser assaltado por aquilo que é hoje quase uma obsessão: “O elemento histórico da música, não simplesmente nos seus aspectos sónicos, mas especialmente o seu significado no contexto da vida em comunidade”.

Os objectos em que a sua câmara se concentra agora, de cânticos religiosos ortodoxos a tocadores cambodjanos de cahpei, serão diferentes dos Vampire Weekend, Tom Jones ou R.E.M. de outros anos. Já o propósito estético dos filmes que compõem a sua série Petites Planétes (a que resulta destes cinco anos de viagem), não se alterou – continua a manifestar-se a vontade fazer da música, do ambiente e das pessoas que a tocam uma entidade una, recorrendo a um registo que é tanto documental quanto expressionista.

Nas sessões de Lisboa e do Porto, é certo que veremos um dos filmes da série From ATP. Quanto ao resto, “tudo pode acontecer”: “Estou mais numa posição de DJ, misturando a minha filmografia, que na de um cineasta a apresentar uma obra específica”. Ou seja, além de From ATP, teremos uma noite em aberto. Poderemos ver de “rituais de xamãs a danças sufi, de noise experimental da Ásia a canções religiosas da América do Sul”. A dimensão espiritual da música, de resto, tem sido a que suscita mais questões nas sessões de Moon. Perguntam-lhe como acede a esse território “sagrado”. E ele surpreende-se com a pergunta. “É como se o sagrado significasse algo sério, escondido, proibido – o que julgo ser um equívoco. Fui muitas vezes bem recebido em cultos locais, e esses momentos foram muito felizes, engraçados até, distantes desta ideia (europeia?) segundo a qual o sagrado tem que ser pesado e aborrecido”.

Moon acentua que não percorre o mundo para preservar tradições ou músicas ancestrais do esquecimento. “Sinto que estou a pesquisar novas culturas e, entre as possibilidades de sociedade que nos são oferecidas actualmente, há um forte potencial de re-sacralização do mundo. É um processo lento, mas acredito sinceramente que a dimensão espiritual da vida tem sido tão atacada neste último século que só pode regressar mais forte nas próximas gerações”.

Depois dos anos a promover uma nova forma de olhar o fenómeno pop, depois de cinco anos viajando mundo fora, Vincent Moon está novamente em transição. “Vou instalar-me no Brasil durante alguns anos e mergulhar mais profundamente nos cultos locais”. Continuará a questionar-se, a maravilhar-se, a procurar novas formas de fazer de som e imagem uma forma unificada. A ética e a estética mantêm-se. O corpo de obra continuará a crescer. A câmara não lhe sai do ombro. Ainda há muito mundo para descobrir.

 

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