Há os dias que são feitos de tudo, de espontaneidade e conquistas, os dias em que a vida é cheia de sentido e invencibilidade. E depois há os outros, que são quase todos — os outros que não sendo iguais entre si acabam por se definir na dificuldade que temos em encontrar algo que nos desprenda de nós próprios. Algo que nos faça sentir mais seguros nas nossas escolhas, na nossa maneira de ser e na nossa forma de ver o mundo. Porque em última análise, a alienação constante a que nos entregamos é só isso mesmo, uma forma inconsciente de nos sentirmos menos sozinhos.
E nisto vi "Her". Brilhante, para mim, mas que nada disto seja tido como uma tentativa de crítica à obra porque não o é, não passa de uma mera interpretação. Até porque nem nisso "Her" é um filme fácil, não é fácil pensar e falar de coisas que nos lembram daquilo que somos e daquilo que gostaríamos de ser. A primeira questão é essa, o estarmos ali em muita coisa, ainda que tudo se passe num futuro que (ainda) não existe. É a constante e inevitável personalização de uma realidade que é a nossa, esta solidão com que nos debatemos todos os dias em cada vez que agarramos no computador ou no telemóvel para nos ligarmos ao mundo, para termos aquele feedback instantâneo que satisfaz. Começa por aí, nessa pequena epifania. Mas vai muito para além disso.
No filme, o protagonista apaixona-se por um sistema operativo super-inteligente. E não, não é de uma pessoa estranha e absolutamente “nerd” que estamos a falar, daí que o impacto de tudo isto seja ainda maior. Ele é um de nós. Um homem, talentoso escritor de cartas, elogiado pelos colegas, gostado pelos amigos, a passar pela dificuldade de um divórcio e pela tristeza que o rumo da sua vida implica. É tudo familiar. E no fim das contas, o próprio facto de ele se apaixonar por aquele “ser” que evolui com ele, que o conhece e compreende acaba também por não nos ser estranho. À medida que o tempo vai passando percebemos o quão vulneráveis também somos. O quanto precisamos de alguém com quem partilhar anseios e frustrações, que nos acalme quando aquilo que sentimos se torna demasiado denso, demasiado confuso. Ainda que esse alguém esteja longe, onde não se chega ou onde não se vê, mas cuja presença se materializa nesse conforto de não nos sentirmos sozinhos ao fim do dia.
Este filme é sobre muita coisa, em última instância também sobre o amor. Não no que vale ou até onde vai mas principalmente na forma como nos transforma, como não é uma questão de adaptação ao outro mas sim uma evolução mútua e constante. Para o bem e para o mal. Ali ultrapassa a realidade para nos fazer conceber que de facto “apaixonarmo-nos é uma coisa louca de se fazer. É como uma forma de insanidade socialmente aceitável.”
Depois de "Her", provavelmente os dias não vão passar a acabar de forma diferente mas talvez aquilo que se busca passe a ter um outro significado. Talvez. É como se a solidão, de repente, se tivesse tornado até um pouco mais bonita.