Indústria farmacêutica gasta 20 milhões de euros em patrocínios num ano

Plataforma da transparência acumulou num ano mais de 12 mil declarações dos laboratórios e de profissionais de saúde e sociedades científicas, mas é difícil perceber se a lei está a ser integralmente cumprida.

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A associação de doentes com patrocínios mais vultuosos é a Associação Protectora dos Diabéticos de Portugal Fernando Veludo/NFactos

A associação de doentes com patrocínios mais vultuosos é a Associação Protectora dos Diabéticos de Portugal, que num ano recebeu 117 mil euros da indústria farmacêutica. Num lugar cimeiro figura também uma organização profissional, a Ordem dos Médicos Dentistas, com um total de 178 mil euros. Mas há também médicos em nome individual que contabilizam mais de 40 mil euros cada num ano.

A legislação que tornou obrigatória a declaração pública dos apoios da indústria farmacêutica a todos os intervenientes no circuito do medicamento, sejam entidades colectivas ou particulares, entrou em vigor fez sábado um ano, a 15 de Fevereiro de 2013. O objectivo primordial era o de tornar transparentes eventuais relações perigosas e conflitos de interesse neste sector tão sensível. Mas a plataforma electrónica criada para o efeito pela Autoridade Nacional do Medicamento (Infarmed) e disponível no seu site é de consulta muito complicada e torna-se quase impossível perceber se a lei está a ser integralmente cumprida.

Com milhares de declarações de patrocínios, honorários, consultorias, donativos, é difícil fazer análises online e o Infarmed não disponibiliza esta informação organizada de outra forma.

“Não é possível facultar esta plataforma através de qualquer outro formato”, respondeu por escrito o gabinete de imprensa da Autoridade do Medicamento. Qualquer cidadão pode aceder às listagens públicas em http://placotrans.infarmed.pt/publico/listagempublica.aspx, acrescentou, sublinhando que estas podem ser organizadas por ordem alfabética ou por valor. O Infarmed admite que não tem “disponível outro motor de busca”.

O PÚBLICO pediu a um especialista que exportasse as declarações para um ficheiro Excel e as organizasse. Um trabalho que demora algumas horas, mas que torna, de facto, perceptível uma informação que de outra forma não passa de um arquivo morto. Feitas as contas, a base de dados acumula mais de 12 mil declarações de apoios dados e recebidos ao longo de um ano.

Somando tudo, chega-se a um total de mais de 19,5 milhões de euros declarados pelos laboratórios contra 14,9 milhões de euros comunicados pelas entidades receptoras. Os valores não coincidem e isso pode ficar a dever-se ao desafasamento temporal (os intervenientes têm até 30 dias para efectuar as comunicações ao Infarmed), mas também à eventualidade de alguns não estarem a cumprir a legislação.

Os  patrocínios de valores mais elevados são habitualmente os que os laboratórios concedem  às sociedades médicas e quase sempre para organização de congressos, encontros e outro tipo de eventos. Em 2013, só para a organização do XXXIV Congresso Português de Cardiologia (realizado em Vilamoura) a Sociedade Portuguesa de Cardiologia (SPC) recebeu de uma dezena de laboratórios mais de meio milhão de euros. “É o maior congresso [do país], teve cerca de dois mil participantes”, justificou uma funcionária da SPC. Esta sociedade médica foi a que mais se evidenciou, “porque começou de imediato a declarar todos os apoios recebidos”, disse, acrescentando que a SPC realiza “n actividades científicas”.

Mas na plataforma electrónica também surgem na lista de beneficiários da indústria farmacêutica alguns hospitais públicos e administrações regionais de saúde. Este ano, o apoio mais elevado foi, aliás, o concedido pela Merck Sharp & Dohme ao Hospital de Santa Maria para a realização do 4.º Curso de Actualização na Terapêutica da Infecção VIH e das Hepatites (166.050 euros). A Merck Sharp & Dohme é o terceiro laboratório mais generoso (1,4 milhões de euros num ano), a seguir à Pfizer, que lidera com um total de 1,9 milhões de euros, e à Novartis (1,6 milhões de euros).

A revelação dos patrocínios da indústria farmacêutica é uma prática instituída há anos em vários países europeus, mas, quando foi criada, há um ano, esta base de dados gerou polémica, com a Ordem dos Médicos a rebelar-se contra a forma como foi instituída, nomeadamente a obrigação de declarar todos os donativos, mesmo os mais ínfimos. A primeira versão do documento considerava que ofertas como canetas, lápis e cadernos deveriam ser divulgadas, mas esta exigência foi rapidamente alterada e o valor mínimo a partir do qual é obrigatório fazer a comunicação passou a ser 25 euros.

Em Setembro passado, novas alterações foram decretadas. O Infarmed adianta que “a mais recente alteração, que se encontra em curso, prevê que até 17 de Abril deste ano as empresas possam reportar a informação de todos os patrocínios concedidos a pessoas singulares a partir de 4 de Agosto de 2013”. Até essa altura, a indústria apenas tinha de comunicar apoios concedidos a pessoas colectivas.

O PÚBLICO tentou perceber se foi detectado algum incumprimento e determinada alguma sanção – as multas podem chegar até aos 45 mil euros –, mas o Infarmed respondeu apenas que “tem vindo a monitorizar cumprindo o disposto na legislação”.

“Ordem dos Médicos não recebe nada”
Há um ano, quando esta legislação foi publicada, a Ordem dos Médicos (OM) anunciou que ia pedir ao provedor de Justiça que suscitasse a sua inconstitucionalidade, alegando que podia estar em causa o princípio da igualdade (porque o mesmo tipo de exigência não era feito a profissionais de outras áreas).

Num parecer do departamento jurídico, a OM aconselhava, mesmo assim, por cautela, que todos os apoios acima de 102 euros fossem declarados, enquanto a situação não se esclarecia. Questionado sobre o resultado deste conflito, o bastonário da OM, José Manuel Silva, diz agora que a situação foi alterada entretanto e que não se tem preocupado com este assunto.

A base de dados “não tem interesse nenhum, não veio mudar nada, como se vê, não há nada de transcendente”, sustenta José Manuel Silva, que está convencido de que, após as alterações efectuadas no ano passado, é a indústria farmacêutica que tem que reportar a informação, não os profissionais de saúde.

A OM, que representa mais de 40 mil profissionais, não surge na plataforma da transparência. “A Ordem não recebe nada da indústria”, assegura o bastonário.

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