Autonomia na gestão dos currículos abre portas à especialização das escolas básicas

O representante dos estabelecimentos de ensino privado diz que, no limite, é possível preparar crianças desde o 5.º ano para entrarem em Medicina. Manuel Pereira, de uma das associações de escolas públicas, considera isso "perigoso".

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No universo de 18.103 alunos acompanhados desde o início, 1875 tornaram-se bons alunos. Público/Arquivo

O texto da portaria, apresentado nesta quarta-feira pelo ministro da Educação, apanhou de surpresa os representantes dos directores das escolas públicas. Mas não surpreendeu os dirigentes da AEEP, frisou Queirós e Melo ao PÚBLICO, congratulando-se por a decisão do MEC “estar na linha do que a associação propõe há anos” e elogiando “a coragem do Governo” por “afrontar os interesses dos adultos e colocar no centro os das crianças”.

A portaria determina que, desde que obtenha o parecer favorável do conselho pedagógico e a aprovação do conselho geral, as 212 escolas com autonomia vão ter flexibilidade para gerir os tempos lectivos a atribuir a cada disciplina, para criar novas disciplinas e distribuí-las de forma diferente ao longo de cada ciclo.

A excepção é constituída por Português e Matemática às quais tem de ser atribuída a carga horária total mínima prevista na matriz curricular nacional. Em relação às restantes disciplinas, as regras são diferentes. A cada uma delas a escola pode retirar 25% da carga horária total prevista na matriz nacional para reforçar outras. O limite é que aquelas que são consideradas menos relevantes mantenham pelo menos 45 minutos por semana.

Dois protocolos assinados anteriormente com o Governo já permitiam aos privados “alguma flexibilidade”, mas “nada que se pareça com o que esta mudança permite alcançar”, frisou Queirós e Melo, lembrando que o Estatuto do Ensino Particular e Cooperativo remete para as regras a aplicar pelas escolas com autonomia.

"Um momento transformador"
“Este é um momento transformador do sistema educativo. Imagine que uma escola tem um corpo docente com uma vocação sólida na área científica e decide apostar num projecto nesse campo. Pode, por exemplo, tirar 25% da carga lectiva de História e 25% da de Geografia para reforçar Física e Química; e tirar mais 25% a Educação Física e outro tanto a Educação Visual para reforçar Ciências. Se quiser apostar nas humanidades ou nas artes pode agir de forma inversa”, exemplificou.

Queirós e Melo frisou que, apesar de, no limite, a alteração à portaria permitir a especialização desde o 5º ano ­­– seja nas áreas ciêntificas, seja nas das artes ou das humanidades ­­– não concorda com a especialização precoce. "Nessa fase as crianças têm é de ser preparadas para a vida", frisou. Considerou, no entanto, que no caso de crianças de escolas em área socialmente desfavorecidas, nomeadamente nas escolas TEIP (Território Educativo de Intervenção Prioritária), o reforço das área artística em detrimento da científica e tecnológica pode criar um ambiente favorável à aprendizagem e contribuir para quebrar ciclos de insucesso".


Referindo-se às possibilidades abertas pela alteração da portaria, o dirigente da AEEPC, disse que "a questão é que isto mexe com interesses muito complicados nas escolas públicas: os directores deixam de ter de cumprir as directrizes emanadas pelo poder central e são chamados a gerir recursos humanos, tomando decisões que que podem implicar a ausência de componente lectiva para docentes de algumas áreas”.

“Admito que as escolas tomem uma posição defensiva dos professores, mas esse não é o único constrangimento”, contrapôs Eduardo Lemos, presidente do Conselho das Escolas. Tal como Filinto Lima e Manuel Pereira, dirigentes das duas associações de directores escolares, Lemos assegura nunca ter ouvido um professor dizer que apenas precisava de 75% da carga horária para cumprir o programa e as metas (uma exigência do Governo que se mantém). “E se precisarmos de professores numa área em que queremos apostar? O MEC vai permitir que os contratemos? Não acredito”, comentou.

"Abre caminhos perigosos"
Manuel Pereira, da Associação Nacional de Dirigentes Escolares (ANDE), considera que “a portaria abre caminhos perigosos”. “A escola pública, democrática, deve formar cidadãos completos, de forma equilibrada. É inconcebível abrir-se a possibilidade de, por exemplo, reduzir ao mínimo a área das Humanidades”, disse.

Filinto Lima, da Associação Nacional de Directores de Agrupamentos e Escolas Públicas (ANDAEP) é, nesse aspecto, menos crítico. Considera que “é praticamente impossível colocar a flexibilização em prática”, “dado espartilho dos programas e das metas e o tempo disponível para ensinar turmas que, ao contrário das das escolas privadas, são numerosas e heterogéneas”. Ainda assim, não o choca a especialização: “A ser aplicável, teria de passar pelo conselho pedagógico e pelo conselho geral, ou seja, seria resultado da vontade da comunidade em que a escola estivesse inserida e, logo, adequada, em princípio”.

Os três directores lamentam que, ao contrário do que está escrito no próprio documento legal, o Conselho das Escolas não tenha sido ouvido sobre o teor da alteração à portaria . Contactado pelo PÚBLICO, o MEC alegou, através do gabinete de imprensa, que aquele órgão consultivo fez “recomendações expressas” sobre a autonomia das escolas, nomeadamente no que respeita à “flexibilização da gestão curricular”.

 

 

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