Algo está mal no reino da FCT quando dois dos melhores alunos de Física do país não recebem bolsa
Este Inverno do nosso descontentamento não vem de uma chuva, nem de duas, mas de uma tempestade de desconsiderações e erros sucessivos que já dura há tempo de mais.
Como já foi noticiado, só 10% dos candidatos, um pouco mais, um pouco menos, obtiveram bolsa. Isto representa uma razia incompreensível para a ciência portuguesa. Por mais que se tente justificar, o número de bolsas concedido é inexplicavelmente exíguo. Não faz sentido abrir-se um concurso com 3416 candidatos para somente 298 receberem bolsa. O esforço envolvido numa perspectiva custo-benefício é demasiado alto em todas as vertentes.
Para melhor se ter uma noção disto, basta dizer que os dois melhores alunos do ano do curso de Mestrado em Engenharia Física Tecnológica do Instituto Superior Técnico, com média final de 19 e 18, não obtiveram bolsa para realizar o doutoramento. Como este curso em Engenharia Física Tecnológica atrai os melhores alunos de Portugal, ano após ano, podemos concluir que dois dos melhores alunos de Física do país não conseguiram bolsa.
Na área da Física foram atribuídas apenas sete bolsas. Certamente estes candidatos que obtiveram bolsas são também excepcionais. Mas, mesmo assim, não há racional, qualquer que ele seja, que possa justificar o facto de dois dos melhores alunos de Física do país não terem tido bolsa e, consequentemente, serem forçados, para todos os efeitos, a emigrar.
Uma das possíveis explicações para este escasso número de bolsas individuais será que muitas das bolsas teriam entretanto sido atribuídas a escolas doutorais criadas recentemente pela FCT. Estas escolas doutorais recebem assim um certo número de bolsas que elas próprias atribuem a candidatos. Esta noção de escola doutoral, se fosse bem direccionada e, sobretudo, racional, poderia ser do maior interesse para o desenvolvimento de uma pós-graduação doutoral sólida no país, pois em Portugal essa pós-graduação doutoral ainda continua incipiente. No entanto, existiram erros, alguns dos quais crassos, em todo o racional que levou à criação pela FCT destas escolas doutorais.
Vejamos com algum detalhe esses erros:
1) Foram criadas escolas doutorais ad hoc, transversais à estrutura das universidades, com a consequência de que o encaixe entre essas escolas e o que já existe se tornou muito difícil senão mesmo impossível para um grande número de casos. Ao se ler o edital, era então já óbvio perceber qual seria a dificuldade. Mas esta viria a ser ignorada, senão mesmo agravada, pela actuação do júri convocado para decidir destas escolas. Não só não houve preocupação em dar suporte a estruturas existentes, com provas dadas, mas foram as novas escolas atribuídas a esta ou aquela área científica de uma forma casuística e conforme as apetências desse júri.
2) Brada aos céus a maneira como este júri foi constituído. O júri do concurso para as escolas doutorais foi assegurado por 17 pessoas apenas, tendo estas que emitir uma opinião sobre a totalidade do pensamento humano, indo da literatura à astrofísica e da história à biomedicina. Estes membros do júri pelos vistos não se envergonharam de decidir sobre matérias (e áreas inteiras!) sobre as quais eram completamente ignorantes, o que por si só é de um exotismo nunca antes visto.
3) Finalmente, e relacionado com as bolsas individuais, tendo as bolsas atribuídas às escolas doutorais sido possivelmente retiradas do conjunto das bolsas de concurso nacional, não era difícil prever que os melhores alunos que se não encaixassem nesta nova moda de programas doutorais, poderiam vir a não receber bolsa. Foi o que aconteceu no caso dos dois alunos excepcionais referidos acima do curso de Mestrado em Engenharia Física Tecnológica do Instituto Superior Técnico.
Queria ainda referir dois aspectos que têm sido levantados por alguns protagonistas desta absurda política científica.
Um aspecto está relacionado com as comparações que se fazem entre Portugal e outros países extremamente avançados cientificamente.
Procurar transferir aspectos parciais de uma política desenvolvida de investigação de um país continental de 200 milhões de habitantes, dotado de infra-estruturas industriais e científicas e de investimentos significativos, para um país de 10 milhões de habitantes com uma indústria relativamente frágil e um sistema científico vulnerável, é desconhecer que nem sempre transformações de escala são possíveis, e que transplantes muitas vezes não são compatíveis. Nem sequer possíveis entre países com populações semelhantes mas com grande disparidade industrial e tecnológica. Perseverar neste erro resulta mais de soberba e arrogância e menos de sentido de Estado.
O outro aspecto está na comparação entre a ciência nacional e a poda de uma árvore. A poda tem que ser feita por gente que sabe. Quando é feita como que por curiosos, mata a árvore. É equivalente a cortar a árvore pelo caule.
Este Inverno do nosso descontentamento não vem de uma chuva, nem de duas, mas de uma tempestade de desconsiderações e erros sucessivos que já dura há tempo de mais.
É por isso óbvio que o actual presidente da FCT perdeu completamente o controle sobre a execução de uma política nacional de ciência, quer pelas razões acima aduzidas, quer, também, pelo cortejo de situações raiando o escândalo, como o é a completa, e recentemente adquirida incompetência em fazer (ao menos!) funcionar o site da FCT, no que resulta numa gigantesca perda de tempo para descobrir por que buraco teimam em desaparecer, uma e outra vez, repetidamente, os relatórios que são enviados. São muitas de facto as consequências nefastas para os grupos de investigação e investigadores do actual estado em que se encontra a FCT. O seu presidente deveria extrair daí as ilações necessárias.
Professor catedrático, presidente do Departamento de Física do Instituto Superior Técnico, Universidade de Lisboa