No mesmo dia que vi Aung San Suu Kyi, cruzei-me com Marine Le Pen. Em meados de um Outono francês, a manhã de Outubro acordou radiosa. Não fazia frio. O céu azul despido e a garrida tonalidade das folhas pareciam encomendados. O Parlamento Europeu esperava há 23 anos por este dia. A azáfama era grande. Um burburinho ansioso ecoava pelas paredes e os eurodeputados esperavam nervosos pela chegada do Prémio Nobel.
Sem demora San Suu Kyi apresentou-se entre longos minutos de aplauso com flores amarelas no cabelo. Fez jus à sua imagem de marca e deixou a plateia delirante. A tez — que julgava menos pálida — contrastava com a sua roupa. Vestia amarelo e verde. Lá do cimo pareceu-me um pequeno pedaço de gente. E no seu jeito suave de estar, pareceu-me tímida. Fez-se acompanhar por poucas pessoas. Na plateia um grupo de birmaneses, heterogéneo e misto, sentou-se ao meu lado. Calados. Ordeiros. Também eles estavam ansiosos por escutar esta delicada mulher da luta. As palavras começaram-se a ouvir num som doce. Num inglês perfeito agradeceu, humilde, o prémio que o presidente do Parlamento lhe entregou. Seguiu-se um discurso melódico de palavras fortes e cheias de vigor. Há no ser humano algo de raro. Com pele de cordeiro tem alma de leão. É um predador. San Suu Kyi só pode ser assim. Vi-a doce e afável, mas para viver exilada na sua própria casa tem de ser fogo.
Não pude assistir a todo o seu discurso. Saí. Pensei encontrar os corredores vazios, despidos de gente a ouvir a resistência. Enganei-me e de caras deparei-me com a força reaccionária. Trocámos olhares. Em poucos minutos o mundo pode ser tudo e o seu contrário. Marine sorria. Não sei se percebeu que eu percebi quem ela era. Confesso que inicialmente ainda fiquei na dúvida. Ainda hoje não sei como ela anda, é como se a tivesse visto em modo estático, enquanto andava. Mas agora sei outras coisas. Marine é alta e a sua postura ocupa espaço.
Há gente que tem uma aura que atrai olhares. Como uma força interior que emanam na transpiração: indolor, sem cheiro, cativante. Contudo, duvido que seja disto que Marine padeça. Senti nela e nos ínfimos segundos que cruzámos, um porte infligido. Como que uma vontade sua de marcar presença.
Ao lado de Marine, dois homens bem mais altos e fortes. Na altura pensei tratarem-se de guarda costas. Muito embora advogue posições radicais, Marine terá, imagino, o apoio dos guerrilheiros da extrema-direita. E o belicismo dos guerrilheiros da extrema esquerda já não é o que era. Os novos bolcheviques munem-se de palavras. E no Parlamento duvido que entrem armas. Pensando bem, os dois homens, deveriam ser como eu, comuns transeuntes.
Saí do edifício. O ar cheirava a castanhas e eu continuava intrigada em saber se de facto me tinha cruzado com a ausente eurodeputada. Andava ainda às voltas com este pensamento quando um outro me dominou. San Suu Kyi está de novo livre.