A FCT e a política de extermínio das Ciências Sociais e Humanas
Um vento maligno levantou-se na Cidade e percorre-a em devastação. Enquanto durar, serão anos de calamidade.
Esta foi a primeira etapa do plano de ajustamento do Governo de Passos Coelho para a Ciência, explicado meses antes à Agência Lusa pelo próprio Primeiro-Ministro (09/11/2011) nos seguintes termos: iria haver alterações ao modelo de financiamento das unidades de investigação, concentrando os apoios “onde eles são cientificamente mais rentáveis”.
Passados dois anos, o Presidente da FCT, em entrevista ao jornal PÚBLICO, fez o balanço do caminho percorrido. Em síntese, diz o seguinte: em 2013, o financiamento aumentou 30% e as mudanças entretanto introduzidas no sistema apenas o vieram tornar de maior qualidade e exigência, promovendo a excelência, a competitividade, a ligação ao tecido empresarial e a produtividade. Por outro lado, acrescentou, ao contrário do que se tem dito, não tinha conhecimento de haver investigadores a sair para o estrangeiro.
Para não me alongar em raciocínios complexos sobre o sentido das mudanças introduzidas no sistema científico pela FCT, em 2012 e 2013, vou esmiuçar o ajustamento empreendido, falando do centro de estudos que criei em 2001 e de que sou diretor. O Centro de Estudos de Comunicação e Sociedade (CECS), da Universidade do Minho, é uma unidade de investigação em Ciências da Comunicação, avaliada pelos peritos internacionais da FCT como Excelente, de resto a única na sua área a obter tal classificação. Trabalham neste centro 60 investigadores doutorados e cerca de 130 investigadores fazem o doutoramento. Por outro lado, uma dúzia de bolseiros apoiam os projetos de investigação em curso. Mas em apenas dois anos, a FCT reduziu o melhor centro de estudos em Ciências da Comunicação do país a uma unidade de investigação residual. Cortou-lhe 30% do financiamento global, não aprovou projetos avaliados como excelentes e reduziu incrivelmente o número de bolsas para formação avançada. Em 2013, o CECS teve apenas uma bolsa de doutoramento aprovada, um projeto aprovado em 2012 e nenhum no concurso de 2013.
Por outro lado, também em 2012, a área de Ciências da Comunicação perdeu a sua qualidade de área específica, tendo sido colocada no único bloco constituído das CSH, o qual, com os seus 15% de peso no financiamento, inclui, além das Ciências da Comunicação, a Sociologia, a História, a Geografia, a Antropologia, as Línguas e Literaturas, os Estudos Culturais, as Ciências da Educação, as Artes, entre outros. A FCT abriu em 2012 e 2013 concursos de investigadores-FCT, para bolsas de topo na investigação. Os cinco candidatos do CECS foram reprovados, como aliás todas as candidaturas nacionais vindas da área das Ciências da Comunicação. Em ambos os concursos, todavia, nenhum membro do júri era investigador desta área científica.
Já em fevereiro de 2013, na nota editorial que assinei na Newsletter da Associação Portuguesa de Ciências da Comunicação (Sopcom), a que presido, escrevi, em síntese o seguinte: “A FCT desencadeou um inaudito e vertiginoso processo de controle dos centros, com relatórios e auditorias que se atropelavam uns aos outros. Sobre a sua atividade, de memória uns, de prospeção outros. Sobre as verbas próprias nos últimos cinco anos. Sobre os artigos publicados na ISI - Web of Science. Sobre a justificação da utilização em 2013 do remanescente das verbas do projeto estratégico de 2011 e 2012. Sobre as atividades relativas a estes dois anos. Sobre o plano de atividade para 2013. [e ] cortaram-nos para cima de 30% das verbas contratualizadas para a investigação”.
Passou-se um ano. A FCT rompeu o pacto de confiança que tinha com as universidades públicas – elas não são mais o seu parceiro privilegiado para a execução das políticas científicas. Entretanto, num galope sempre cada vez mais alucinante e vertiginoso, a irracionalidade seguiu impante. Concursos estruturantes para a vida das instituições nos próximos seis anos, a serem abertos nas férias de verão ou a serem lacrados na passagem do ano. Concursos sem regras fixas, ou com regras de geometria variável, a serem fixadas em andamento, e até depois de concluídos os concursos, ou então, pasme-se, a serem alteradas no meio de concursos abertos. Plataformas informáticas que nunca funcionam de modo escorreito e tornam caótica a gestão dos prazos dos concursos. A aplicação de métricas à produtividade científica nas CSH, completamente inadequadas, que fazem depender a qualidade académica de meras agências de rating. A nomeação de um Conselho Científico de Ciências Sociais e Humanidades, sem consulta à comunidade académica e com a credibilidade ferida por uma série de intrusos, desqualificados na área, uns, com o estigma da encomenda partidária, outros, e com o vício do nepotismo, outros ainda, um Conselho diminuído em “autonomia, autoridade e experiência”, a ponto de seis das principais associações científicas desta área terem exigido, sem mais, a revogação da decisão de nomeação.
Esta estratégia, de tão feroz e ensandecida, apenas pode ter como objetivo destruir a comunidade académica, vencendo-a pelo cansaço, pelo nojo e pelo desespero, na presunção de que seja impossível suster tamanho ciclone.
E, todavia, instados a pronunciar-se sobre o CECS, o inglês Denis McQuail, professor da Universidade de Amesterdão e uma referência mundial nas Ciências da Comunicação, e também a inglesa Annebelle Sreberny e a estadunidense Janet Wasko, respetivamente, a antiga e a atual presidentes da mais importante associação mundial de Ciências da Comunicação, a International Association for Media e Communication Research (IAMCR), escreveram, em síntese:
“O CECS é o mais reputado centro de pesquisa português em várias áreas, que incluem a literacia mediática, a economia política dos média, a regulação dos média, os estudos lusófonos (políticas da língua, políticas da comunicação, identidade e narrativas, identidade e multiculturalismo), e estudos sobre as políticas científicas e tecnológicas no espaço ibero-americano. Além disso, o CECS desempenha um papel de liderança crítica nos estudos da Comunicação. Os seus membros detêm posições de topo em associações internacionais e na direção de alguns bem-conhecidos grupos de pesquisa internacional. O centro organizou, por outro lado, alguns dos mais importantes congressos internacionais de Comunicação: o Congresso da IAMCR; em 2010, vários Congressos Lusófonos, desde 1999; o Congresso da Secção de Rádio da ECREA, em 2012; o Congresso Europeu de Semiótica Visual da IAVS, em 2011”.
Releio agora a entrevista do Presidente da FCT ao jornal PÚBLICO, de há uma semana. Ouço-o, mais uma vez, na audição parlamentar em que esteve com a Secretária de Estado da Ciência, Leonor Parreira, em finais de dezembro passado. Recordo, entretanto, a audiência que me concedeu há quinze dias. E olho para as duas cartas de recomendação que acabo de escrever para jovens investigadores do CECS, ambos recém-doutorandos, com bolsas de pós-doutoramento recusadas, mas que concorrem agora a lugares abertos, um pela Universidade de Boston, outro pela Universidade de Dresden. E penso, deveria ser permitido puxar da pistola, quando do Governo ou da FCT nos viessem falar de qualidade e de excelência, de ligação às empresas, de empreendedorismo, de competitividade e de produtividade. Porque é criminosa uma política científica que não tem pensamento nem cultura, que não tem conhecimento nem consciência.
Um vento maligno levantou-se na Cidade e percorre-a em devastação. Enquanto durar, serão anos de calamidade.