Um homem sozinho

A Letra Livre presta sumptuosa homenagem à editora &etc e a Vítor Silva Tavares, seu criador: &etc — Uma Editora no Subterrâneo, projecto coordenado por Paulo da Costa Domingos (também editor e poeta), é um tributo em forma de “livro-quase-objecto-que-apetece-tocar” próximo dos exemplares dessa mesma insólita editora que atinge os 40 anos. A fisionomia, deste e dos da &etc (e, antes dos livrinhos, a revista com o mesmo nome): um quase quadrado. Não sendo, parece-se com os exemplares da colecção que logo se reconhecem, um mito para muitos e por muitas razões, resultado da temeridade do editor que sobrevive lá para o fundo de um palacete da Rua da Emenda, em Lisboa. E da colaboração de vários amigos e artistas, muitas vezes graciosa.

A ideia de quadrado, sublinha Vítor Silva Tavares, esse insaciável contador de histórias, numa entrevista aqui incluída de Alexandra Lucas Coelho, foi permitindo uma exploração esplêndida das capas, gráfica e plasticamente. Partiu de uma conversa com o mestre Almada Negreiros, de quem era amigo íntimo. “É uma forma aparentemente rígida. Em princípio até limitadora de liberdades(...). Esse quadrado em vez de ser limitador (...) é um desafio aos criadores.” Muitos, tantos; vale a pena passar os olhos para se ter noção. Há quem coleccione as capas, mesmo se os autores dos textos, como é natural, não tenham sempre igual interesse, ou o mesmo interesse para todos. Chegou a haver, em 2009, na Rua da Rosa, em Lisboa, uma exposição de capas realizada pelos Estúdios Rosa, cujas folhas de sala são aqui fac-similadas.

Como autores deste livro (e convém referi-los a todos para eventualmente traçar um denominador comum: Adília Lopes, Alexandra Lucas Coelho, Cláudia Clemente, Eduardo de Sousa, Emanuel Cameira, Fernando Cabral Martins, Graça Martins, Isabel de Sá, Isaque Ferreira, Júlio Henriques, Luís Henriques, Luiz Pacheco, Manuel de Castro, Manuel de Freitas, Paulo da Costa Domingo, Pedro Oom, Pedro Piedade Marques, Rocha de Sousa, Vasco Tavares dos Santos, e o próprio Vítor Silva Tavares), diferentes perfis, várias gerações. Artistas plásticos, gráficos, poetas, jornalistas, editores, aventureiros, todos sobre um pano de fundo surrealizante. Fazedores de uma arte menor, no sentido deleuziano. Grande parte estão vivos. Podemos subsumi-los numa Marginália. Isto é, e citando a Wikipédia, esse manancial (im)perfeito dos nossos dias: seres que vivem à margem do conjunto de direitos e deveres de uma sociedade, meio em que proliferam actividades anti-sociais, grupo de marginais ou deliquentes que se organizam em grupos sociais ou actuam neste local ou meio. Não serão propriamente delinquentes, mas nasceram e reproduziram-se heterogeneamente à margem do gosto de maiorias e da lógica editorial que conduziu aos grandes conglomerados e à edição sem editor, como diria André Schiffrin, ou até, como escreveria Manuel de Freitas, aos Circo Chen da literatura em tournée, tão linda que até faz chorar. Autores que foram ou são compagnons de route do editor, vários publicados na colecção e que aqui prestam o seu depoimento, assim como se juntam as cartas de Luiz Pacheco e a já referida entrevista de Alexandra Lucas Coelho onde o editor traça o seu perfil demoradamente, ao mesmo tempo que arrebata as inúmeras inesperadas histórias que moldaram a sua vida. Através delas, figuras do nosso tempo são convocadas, sempre com inteligência e graça.

Predominam na vida da &etc a poesia, até de autores que seriam publicados noutras casas maiores (Herberto Helder, Fernando Assis Pacheco, Silva Carvalho, Aberto Pimenta ou Nuno Júdice), textos em fragmento(s), textos ficcionais de género sem género, textos de autores que se celebrizaram noutro género (Paul Gauguin, por exemplo), textos menores de autores maiores (Strindberg), textos de autores malditos (Artaud, Michaux ou Péret), textos abjectos (Luiz Pacheco, João César Monteiro). O que pesa será o facto de serem sempre à margem de um regime normalizador. Se observarmos o trajecto de Vítor Silva Tavares e dos livrinhos que, sem apoios, não cessou de publicar, reduzindo as tiragens, o termo que o define será o de “provocação”. Os livros que escolhe editar têm, além de uma qualidade literária óbvia (Vítor Silva Tavares é um grande leitor), um grau de pura provocação, por vezes até quase gratuita. O que é pouco, mas será irresistível para este editor anarca e libertário. São felizmente raros os casos em que essa é a única qualidade literária das obras editadas (caso de O Bispo de Beja, de Homem Pessoa), e deseja-se que o editor não se deixe tentar por aí. E que continue descomprometidamente a editar (de Jorge Roque, Fernando Cabral Martins, Vítor Nogueira, Luís Gaspar, Rui Caeiro, Manuel de Freitas, Bénédicte Houart a muitos, muitos outros): é sempre um acontecimento, um frisson, saber-se que mais um livro da &etc acaba de sair.

Importantíssimo ainda referir o facto de Vítor Silva Tavares e as edições &etc terem sabido reunir, fazendo disso a sua marca, o texto à fisionomia, à materialidade em que se apresenta: do papel ao tipo de letra e ao design da capa. O texto de Luís Henriques (grande artista da casa) é, neste livro, um dos mais perspicazes e esclarecedores: “A subtileza do ofício cria laços quase entre as artes gráficas e o texto; o livro começa mesmo antes de se abrir (...). Trata-se da renovação constante do encontro entre a escrita e a ilustração, ao longo de tantos anos.”

As edições &etc são emblema timoneiro do que de mais interessante se edita hoje entre nós, a tendência que agrega criadores de várias origens (artes plásticas, artes gráficas) e que se expande em circuitos mais ou menos marginais. Esta tendência (in)voluntária e indirectamente define e limita os géneros de criação. Redu-la à poesia e ao fragmento. O que não é necessariamente um mal. Nem por si só um bem. Será uma direcção criativa, uma diagonal traçada. 

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