Há uns meses, os Capitão Fausto decidiram que a melhor coisa que poderiam fazer antes do lançamento de Pesar o Sol e enquanto não entrassem em digressão seria, pois claro, fazer uma digressão antes da digressão (óbvio, não é?). Entre 4 e 15 de Dezembro, tocaram em pequenas salas ou locais de paragem pouco habitual.
“Queríamos fazer uma daquelas digressões em que não voltamos a casa durante não sei quantos dias”, explica Domingos Coimbra. “Tocámos em bares onde a única coluna de monição não tinha tomada, com um som não muito bom em quase nenhum concerto”. Isto não é um queixume. Longe disso: “Isso é que é rock’n’roll. O ambiente do clube, estar mesmo à frente das pessoas. Tivemos a oportunidade de tocar [antes] em festivais e sítios maiores, mas isso pode levar as bandas a ficarem mal habituadas. Nós fomos os primeiros a achar que era fixe ir a estes pequenos sítios”. Esta pequena história diz muito sobre os Capitão Fausto e sobre o que os anima – este entusiasmo que contagia, o viver o rock’n’roll sem peneiras à vista. Mostraram-no em Gazela e, com Pesar o Sol, essa sensação amplifica-se – será editado segunda-feira e há concertos de apresentação a 6 de Fevereiro no Lux, em Lisboa, e a 22 no Hard Club, no Porto.
Estamos numa das salas dos estúdios Black Sheep, em Mem Martins. Tomás Wallenstein, vocalista e guitarrista, Salvador Seabra, baterista, Domingos Coimbra, baixista, e Manuel Palha, guitarrista. Quatro dos cinco Capitão Fausto. A ausência do quinto, Francisco Ferreira, o teclista, é bem justificada – ocupavam-no afazeres universitários (todos os Capitão Fausto acumulam os cursos com a vida enquanto banda). Isso não mudou desde que os encontrámos pela primeira vez, quando estava prestes a ser editado o álbum de estreia que os tornou uma das bandas mais interessantes do cenário português, ponto de encontro particularmente feliz entre rock de várias proveniências, servido por um talento instrumental evidente (falamos de pessoal que imaginamos a correr para a sala de ensaio sempre que tem 10 minutos livres).
Mas há mais que não mudou. Por exemplo: estão a contar-nos dos concertos da digressão de Dezembro, a falar das garagens em que dormiram, daquele concerto em só estavam 20 pessoas, e depois referem aquele momento em que três tipos lançam gritos de entusiasmo perante a t-shirt dos Gentle Giant que adorna o tronco de Francisco e em que esses três tipos ganham respeito eterno pela banda (imaginamos nós) quando Manuel e Domingos tocam uns excertos de música da banda de culto do rock progressivo dos anos 1970. Gentle Giant? São mais uma entre a miríade de referências na música dos Capitão Fausto. Mas tanta quanto haja, o essencial neles é isto: a forma como conseguiram criar um híbrido em que a pop faz prog, em que o rock’n’roll grita “quando o país rebentar”, em que o fascínio pela cultura da música popular urbana anglo-saxónica se verte em canções d’aqui e d’agora – e então parte da letra de Terrapin, de Syd Barrett, escrita em 1970, verte-se em verso de retrato geracional de 2013: “Nós somos peixes e o que os peixes fazem é só estar”.
A vida, a de todos os dias
Aquilo que são os Capitão Fausto, aponta Tomás, nasce em parte do desejo de “assumir a naturalidade” no gesto criativo: “Isso faz-se com o quê? Com as coisas que nos são mais comuns. Eu percebo a vontade de fazer música indo buscar a tradição musical portuguesa, mas não ouço música tradicional portuguesa, portanto não sinto a necessidade de me enraizar dessa maneira”. É a vida, a de todos os dias, que lhes faz pertença: “As coisas que passamos juntos e as ideias que vamos tendo enquanto atravessamos juntos o tempo”.
As canções de Pesar o Sol foram nascendo durante numa quinta em Paredes de Coura. A banda a tocar, amigos por ali a fazer-lhes companhia. E um dia de descanso. Jantar bem regado, seguido de romaria até à aldeia de Formariz, onde era noite de baile. “As pessoas na festa estavam com um ar um bocado sério”, recorda Tomás. Que recorda também o momento seguinte. Salvador a subir ao palco bem apetrechado da banda que animava as gentes para dançar, a banda a parar de tocar, as gentes a irritarem-se com os forasteiros, a tensão a subir e Manuel a dar por si, sem saber bem como, de t-shirt rasgada, a olhar para “a aldeia toda em peso na praça para nos expulsar” e a improvisar um discurso de apaziguamento. No dia seguinte, nascia A célebre batalha de Formariz”, canção turbilhão de secção rítmica nervosa e guitarra picada que é um dos destaques de Pesar o Sol. Sim, é a vida, a de todos os dias, que os enraiza.
Composto em Paredes de Coura, o novo álbum foi depois gravado entre pipas numa adega da Quinta de Santo Amaro, nos arredores de Cantanhede. “Gostamos de sair da rotina normal de Lisboa. Gravávamos às horas que queríamos, num ambiente mais descontraído, a tocar na mesma sala, olhos nos olhos”.
O disco que ali nasceu é de uma natureza diferente de Gazela. Tal torna-se óbvio logo a início. Nunca faço nem metade, a primeira canção, fala-nos de uma angústia muito comum, aquela que a preguiça provoca em quem planeia tanto fazer – “nunca faço nem metade / do que me diz a vontade”. Os Capitão Fausto, porém, não se ficam pela metade. Seis minutos de canção. Seis minutos em que o ataque angular das guitarras, muito pós-punk, desemboca em planar Floydiano, descobre espaço para coros de gentileza pop e divaga espaço fora até acenar a Kevin Parker, dos Tame Impala, na galáxia à esquerda, e aos Toy, na galáxia à direita. Ter esta canção a abrir o disco é um aviso: os Capitão Fausto não estão aqui para enganar ninguém.
“Achámos que o mood era uma boa preparação para o disco. Passa por um imaginário bastante diferente do Gazela. É uma massa de som que vem e… e pronto”. Está bem dito. E pronto.
Antes os Capitão Fausto eram uma banda rock com refrães certeiros (Teresa, exemplo óbvio, colava-se à mente para não mais sair) que polvilhava a estrutura mais imediata das canções com matéria sónica de teor psicadélico elevado. Em Pesar o Sol inverte-se o equilíbrio.
Esta é uma banda que mergulhou decisivamente no caldeirão psiucadélico que suscita viagens instrumentais ideais para levitar de auscultadores postos, é uma banda que faz da liberdade da viagem a sua principal motivação mas que arranja forma de nunca nos perder de vista: as arestas pop limadas, guiadas pela voz de Tomás, são precisamente o que faz esta música ressoar de forma tão especial. Quando mostraram Maneiras más, o segundo single, a algumas pessoas, a reacção foi entusiasmada. Como podia ser de outra maneira? Tinha mesmo ar de single. A frase inicial é irresistível: “Quando o país rebentar”. O ritmo idem: pede corpos em movimento, com prato de choque em contratempo, baixo gingão e tapete de teclas a dar colorido à dança. Chega o refrão e é rock’n’roll com batida insinuante e guitarras a amparar a voz. “Mas chega ali aos 2m50s, entra um solo de órgão”, conta Manuel, e o entusiasmo deu lugar a algum cepticismo: seguem-se três minutos em cadência lenta, com baixo em loop a criar um efeito hipnótico e solo de órgão a fervilhar. Isto é, assegure-se, muito bom. Isto são os Capitão Fausto agora. Pressão do segundo álbum? “Só nos apercebemos que existia quando nos alertaram para isso. ‘Olhem que o segundo disco é muito importante’”. Tarde demais. Já estava feito.
Os Capitão Fausto são muito sérios, seríssimos, na entrega apaixonada à música que fazem, são gente devota à história do rock’n’roll e às discografias e mitologias anexas que a envolve. É isso que lhes interessa. É isso que querem que a sua música reflicta. Questões laterais como essa do segundo álbum que é tão importante e é preciso ter cuidado e vejam lá que single é que vão pôr cá fora, não têm eco neles. Nem sequer se lembram disso: estão demasiado ocupados a transformar em música o fascínio que lhes ocupa os dias.
Mais de dois anos depois de editar o álbum de estreia, quando já andaram a pisar os palcos dos festivais de Verão, quando já viram as suas canções rodar em abundância na rádio e ser partilhada online a bom ritmo, ou seja, quando já provaram um pouco do doce néctar do sucesso num país chamado Portugal, continuam a ser cinco tipos que se metem dentro de um carro numa rua qualquer lá do bairro para ouvir aquele disco que têm mesmo que mostrar uns aos outros. Depois correm para a sala de ensaios. Depois nasce um portento como Pesar o Sol. E assim sucessivamente.