Ministro debate SNS no Parlamento num dia em que quase todos tiveram direito ao disparate
Quatro horas e meia da Comissão de Saúde marcadas por crispação, bocas e comentários paralelos. Muitas das perguntas sobre o Serviço Nacional de Saúde foram as que ficaram de fora das respostas.
A audição começou com uma intervenção do PCP. A deputada Paula Santos lançou várias questões relacionadas com dificuldades de acesso a tratamentos de fisioterapia, falta de profissionais em várias áreas, e recordou outros episódios recentes, como o caso de uma doente que esperou dois anos por uma colonoscopia, acabando por desenvolver um cancro não operável, e os relatos de urgências entupidas com longas horas de espera no pico da gripe, atribuindo-os à “política de desmantelamento com o fim de negar a saúde aos portugueses” por parte do ministro da Saúde.
Estava lançado o suposto debate. Paulo Macedo começou por responder que o argumento do desmantelamento é o “mais estafado” e garantiu que vai “deixar um SNS mais favorecido” do que aquele que encontrou, ao deixar de estar “capturado e suspenso pelos fornecedores”. Sobre as urgências garantiu que os doentes mais emergentes, os que recebem pulseira laranja e vermelha, foram vistos dentro do tempo previsto, mas não negou que os “tempo de espera são indesejáveis” para os restantes casos e que estão atentos.
Porém, o esquema de pergunta/resposta de forma ordeira durou pouco. Do lado da oposição começou o burburinho por o ministro estar a responder à realidade com números que mereceram desconfiança, já que Paulo Macedo referiu aumentos da actividade assistencial em termos de consultas e cirurgias e aproveitou para anunciar que em 2013 os dados provisórios do Instituto Nacional de Estatística indicam que a taxa de mortalidade infantil voltou a baixar.
Do lado da coligação (PSD/CDS-PP) montou-se uma barreira de defesa à equipa ministerial, repetindo-se elogios e a palavra “orgulho” por Paulo Macedo e apelando-se à que a oposição fosse mais responsável numa área sensível como a saúde. Elogios de tal forma repetidos sempre que tomavam a palavra que, num dos casos, sobre o combate à fraude no sector do medicamento, foi o próprio ministro a intervir para recusar parte dos louros atribuídos pelos sociais-democratas e dizer que nesse campo muito do mérito era do Ministério Público e da Polícia Judiciária.
"Tenho tanta confiança no SNS como desconfiança no ministro"
O primeiro episódio emblemático foi protagonizado entre o próprio ministro e o coordenador do Bloco de Esquerda. João Semedo, por estar rouco, começou por ironizar que estava “afectado” mas não por falta de cuidados de saúde no SNS e sim por ser “um mau doente”. “Tenho tanta confiança no SNS como desconfiança no ministro Paulo Macedo”, disse, acusando de seguida o titular da pasta da Saúde de basear a discussão apenas em “indicadores administrativos” quando muitos deles “reflectem políticas de largo prazo”, referindo-se à mortalidade infantil. Na resposta, Paulo Macedo diz que “o deputado está claramente afectado”. E Semedo conclui o primeiro episódio: “O senhor ministro perdeu uma boa oportunidade de estar calado”.
O episódio acabou por quase abafar um caso relatado por Semedo no âmbito do problema das urgências, dando a conhecer a situação de uma mulher de 67 anos que deu entrada a 25 de Novembro no Hospital Fernando da Fonseca (Amadora-Sintra) às 16h47 com dores no tórax, transportada pelo INEM e a quem foi atribuída pulseira amarela. A doente, segundo o partido, só foi atendida às 23h00 e quando era levada para o raio-X morreu, confirmando os médicos que estava a fazer um enfarte, agravado pela espera. O Bloco de Esquerda já pediu que o caso siga para a Inspecção-Geral das Actividades em Saúde.
No resto do tempo, sempre que uma das alas da mesa falava, do outro lado ouviam-se comentários, risos, crispação. Foram raros os momentos em que um interveniente conseguiu falar sozinho. A presidente da Comissão de Saúde pediu respeito várias vezes e apelou ao silêncio, para que o próximo deputado ou o próprio ministro pudessem começar a falar.
Da parte da equipa governamental, o secretário de Estado e adjunto da Saúde, Fernando Leal da Costa, mais para o fim da maratona, também recorreu à ironia para abordar o pedido de investigação entregue na Procuradoria-Geral da República por um grupo de médicos sobre o excesso de mortes no último Verão, que atribuíram à onda de calor. “Todos temos direito ao dia do disparate”, disse, o que gerou mais confusão, ouvindo-se alguém dizer “disparate o que se passa aqui”.
"O país real não é só o Seixal"
O deputado do PSD Miguel Santos destacou-se também em alguns episódios. A propósito dos comentários de Paula Santos sobre as dificuldades de acesso na margem Sul, disse que “o país real não é só o Seixal”. Da ala da oposição prontamente surgiram apupos, acompanhados de acusações de o outro lado da mesa não ir aos hospitais públicos e ver o lado “apetecível” de entregar convenções aos privados. A socialista Luísa Salgueiro disse também que Paulo Macedo “está mais habituado a tratar dos números, fixa-se nos mercados e esquece-se de tratar dos portugueses”.
Depois, quando a socialista Catarina Marcelino relatou que visitou no recente pico de gripe as urgências do Hospital Garcia de Orta, em Almada, presenciando salas cheias e pessoas às portas por falta de recursos, Miguel Santos repetiu várias vezes: “Eu não acredito em si”.
As medidas anunciadas entre comentários
Algures no meio das quatro horas e meia, Paulo Macedo conseguiu finalmente dizer que em 2013, no âmbito de acordos com a indústria farmacêutica, conseguiu que esta devolva cerca de 80 milhões de euros ao SNS gastos em medicamentos hospitalares e que neste momento as dívidas aos laboratórios já vão nos valores mais baixos de sempre: 600 milhões. Já neste mês vão também contratar 200 médicos para os centros de saúde.
No âmbito da Linha Saúde 24 vão criar um serviço destinado aos idosos em que, em colaboração com a GNR e a Comissão Nacional de Protecção de Dados, vão identificar as pessoas em maior situação de vulnerabilidade para assegurar que têm o devido acompanhamento, o que poderá passar até por consultas de enfermagem via skype.
Já quase no fim, o telemóvel do secretário de Estado Fernando Leal da Costa tocou e quando o governante pedia desculpa e desligava o aparelho o deputado comunista David Costa rematou dizendo: “O Governo também pode desligar e ir embora”. A resposta não demorou a chegar. “Falta de berço”, contrapôs a social-democrata Conceição Bessa Ruão. No final, esgotado o tempo, os parlamentares consideraram que sem resposta ficaram muitas das perguntas formuladas sobre o SNS. A presidente da Comissão de Saúde, a deputada Maria Antónia Almeida Santos optou por encerrar os trabalhos dizendo: “A não resposta também pode ser entendida como uma resposta”.