“Ela é brasileira, mas tem pais portugueses”. É assim que sou muitas vezes descrita, numa formulação em que o “mas” diz tudo. Sim, é brasileira, nota-se pelo sotaque, mas é como se fosse portuguesa. O “mas” tem uma acção branqueadora que me salva ou me amaldiçoa consoante os olhos de quem me vê. Esta condição coloca-me numa zona híbrida, um lugar indefinido mas com vista privilegiada para os preconceitos que povoam as relações entre brasileiros e portugueses. De onde estou, vejo com muita clareza: é mútuo o desejo, ainda que inconsciente, de reduzir o outro a um estereótipo.
“As brasileiras são boas de cama.” “Os brasileiros não são de confiança.” “As brasileiras querem é arranjar marido rico na Europa.” “Os brasileiros são bons a jogar bola.” “As brasileiras arranjam as unhas como ninguém.” Todos estes estereótipos — positivos ou negativos — existem apesar de sabermos que as generalizações são redutoras. É óbvio que, como diz a canção entoada por Maria Rita, "nem toda brasileira é bunda". Mas, ainda assim, com maior ou menor frequência e intensidade, nós continuamos a projectar essas imagens fixas na forma como interagimos com quem nasceu no Brasil. É uma atitude transversal, que parece não depender de classe social ou grau de escolaridade.
São muitos os universitários brasileiros a estudar em Portugal que enfrentam estereótipos, como mostra a reportagem de Amanda Ribeiro, publicada esta quinta-feira no P3. Curiosamente, nenhum entrevistado aceitou revelar o nome aos nossos leitores. Terão vergonha? Todos alegam receio de represálias. São cultos, vivem num ambiente onde é suposto ser incentivado o pensamento crítico. Mas não se sentem confortáveis para apontar o dedo àqueles que ofendem, assediam ou perpetuam estereótipos.
Os relatos de atitudes xenófobas em contexto académico vêm reforçar a denúncia patente na campanha mediática “Quantos de nós já sentiram isto na pele?”, lançada recentemente no Facebook por uma lista candidata à direcção da Associação Académica de Coimbra. Nesta iniciativa, estudantes da Universidade de Coimbra davam a cara, empunhando cartazes nos quais descreviam casos de racismo, xenofobia, homofobia e machismo. Passado algum tempo, todos os rostos foram retirados da campanha. Ficaram apenas as mãos, anónimas, a segurar palavras de denúncia.
Tenho curiosidade em saber qual é a experiência dos estudantes portugueses no Brasil. São bem tratados? São alvo de piadas? Sentem-se reduzidos a um estereótipo? As cenas que testemunhei sugerem que sim, que são vítimas de chacota — e isto tem obviamente razões históricas, coloniais, como Daniel Cardoso explica nesta crónica. Os portugueses, quando estão num contexto em que os brasileiros estão em maioria, são muitas vezes alvo de piadas que põem em causa a sua inteligência, por exemplo. As mulheres portuguesas são imaginadas como peludas, provincianas e pouco femininas. Nada dramático, é certo, nada que vá pôr em causa as relações diplomáticas entre os dois países. Mas são estereótipos que existem e continuam a gerar situações de desconforto, apesar dos inúmeros exemplos positivos de aproximação e afecto entre os dois países. E se existem, não está na hora de darmos a cara e falarmos abertamente sobre o assunto?
Nota final: Nunca fui vítima de xenofobia em Portugal, nem no local de trabalho nem em contextos académicos. Mas isto não me impede de reconhecer que há, sim, estereótipos, preconceitos e discriminação. E de estar solidária com as vítimas nos dois lados do oceano.