Nas universidades, tal como na sociedade, o brasileiro é ladrão e a brasileira é fácil?
Os milhares de estudantes brasileiros que frequentam as universidades portuguesas convivem com o estereótipo. E confirmam: há atitudes xenófobas, e em todo o lado
Quando foi entregar um CV a um café, recusaram-no. Porque “todos os brasileiros são ladrões”. Na faculdade, todas as semanas ouvia comentários “irónicos” pelo mesmo professor, que por vezes também apontava o alvo para os estudantes dos Países Africanos de Língua Oficial Portuguesa. A propósito da novela “Dona Flor e Seus Dois Maridos”, recorda um deles: “Essa putaria é mesmo coisa de brasileiros.” Uma vez, o namorado português, mais jovem do que ele, perguntou-lhe se era prostituto. “Por ter viajado, por ter vivido em vários países, por falar vários idiomas e ser brasileiro. Dizia que não era normal um brasileiro ter esse modo de vida.” O relacionamento terminou aí. “Magoou-me muito. Perguntar-me se era prostituto por isso.”
D.M., 26 anos, deixou Minas Gerais há sete anos e nunca mais largou a Europa. Já viveu no Reino Unido, França, Espanha, onde agora se encontra, e Portugal — tenciona regressar este ano para terminar o curso de Relações Internacionais na Universidade Autónoma de Lisboa. Diz que em nenhum país passou por “tantas histórias” como por cá — por isso recorre, por vezes, à palavra “xenofobia”. V.F. idem. “Comparando com o Brasil, é muito xenófobo”.
A estudante de Psicologia chegou a 1 de Dezembro para completar um estágio. Não lhe aconteceu nada de “muito grave”, mas ainda tem um par de histórias para contar. Na cantina, quando estava a pagar a refeição, um funcionário português perguntou-lhe, a brincar, se não estava nenhum real entre aqueles euros. Entretanto, a conversa fluiu, e V. ficou a saber que ele era casado com uma brasileira. “Costumo dizer que ela é arraçada”, disse-lhe. V., que já tinha ouvido falar dessa descrição, respondeu: “Se eu sou arraçada, você é nazi.” Ele “ficou sem graça” e ela acabou por dizer que estava a brincar. “Ele fez-me uma brincadeira para ofender e eu acabei por ofendê-lo.”
Os estereótipos estão “enraizados”, diz D. ao telefone com o P3. “O homem é analfabeto, burro, ladrão; a mulher é prostituta, fácil e aproveitadora; o homossexual [brasileiro] quer aproveitar-se do dinheiro dos europeus mais velhos.” V. concorda: “Os portugueses têm a imagem de um povo subdesenvolvido.” E o “preconceito é sempre pior para a mulher”, tradicionalmente “mais julgada” por questões de género. Noutro dia, a orientadora perguntou-lhe se “estava a ser bem tratada”. Depois percebeu porquê: “Uma aluna dela alugou um quarto numa casa de um casal e o marido fez uma série de investidas [sexuais].” Mais tarde, ficou “boba” quando uma colega lhe reproduziu uma típica ladainha particularmente incrustada na sociedade portuguesa: “[As brasileiras] Vêm aqui para roubar o nosso marido.”
Todas as portuguesas têm barba
Do outro lado do Atlântico, a mesma história, conta D.: “O português é burro e a mulher tem barba e pêlo nas axilas. Eles são sempre João, elas são sempre Maria.” Países irmãos, mas nem tanto? No ano lectivo de 2012/2013, de acordo com dados enviados ao P3 pelo Ministério de Educação e Ciência, estavam matriculados no ensino superior 8917 estudantes brasileiros (incluindo alunos em mobilidade internacional). É o país estrangeiro que mais exporta estudantes para Portugal, e muitos escolhem a mais antiga universidade do país — em 2012/2013, inscreveram-se na Universidade de Coimbra 2139 brasileiros (1.º, 2.º e 3.º ciclos e cursos não conferentes de grau). Em todo o mundo, é a que mais brasileiros recebe.
Existe, realmente, preconceito em relação aos estudantes brasileiros, como uma mediática campanha, lançada no Facebook, de uma lista para a direcção geral da AAC alertou? Nela, jovens, muitos de cara descoberta, empunharam cartazes a dar conta de comportamentos discriminatórios, alguns deles dentro do espaço da academia — expõem relatos de actos racistas, homofóbicos, machistas, mas também xenófobos. Entretanto, as faces foram retiradas de todas as fotos.
Em declarações enviadas por e-mail ao P3, a Universidade de Coimbra (UC) diz que, ao ter conhecimento das "suspeitas levantadas", ouviu os estudantes, que não apresentaram “queixa contra ninguém em concreto”. “Apesar de se ter apurado que algumas das afirmações que faziam eram falsas, empreenderam-se diligências diversas para saber se algum episódio concreto de xenofobia. Nada se detectou.” Por seu turno, a Lista R, em comunicado, reclama respostas e recusa que "deslegitimem a palavra das vítimas". Esta quarta-feira, em conferência de imprensa, os estudantes anunciaram uma nova campanha de combate a todas as formas de discriminação, como a "homofobia, o machismo ou a xenofobia", descreveu Alexandra Correia, líder da Lista R, citada pela Lusa. Dia 4 de Fevereiro, será, por isso, organizada uma reunião, aberta a toda a comunidade académica, para se desenvolverem novas acções de sensibilização. Contrapondo a UC, a estudante de Sociologia avisa que "há queixas a serem conduzidas", apesar de não informar quantas foram apresentadas formalmente, descreve a Lusa. "As pessoas", considera a aluna, "não fazem denúncias com medo de represálias ou porque não acreditam na eficácia dos mecanismos da universidade".
Havendo ou não queixas formalizadas, D. confessa que antes de emigrar já lhe tinham “falado sobre xenofobia” em Portugal. À sua volta há mais histórias como a dele. “Tenho uma amiga brasileira que regressou para o Brasil ao fim de um ano em Portugal. Ela era solteira e os homens estavam sempre a dar em cima dela; por ela ser brasileira diziam que ela era fácil. Ela não esperava isso.” Por seu turno, a V., paulista, sempre disseram que “português gosta muito de brasileiro”. Veio “tranquila”, mas depois começou a ficar “assustada” com essas histórias, “algumas delas no meio universitário”. Por isso, confessa, pelo preconceito, tenta não dar nas vistas. “Eu, de facto, tento não dar a entender que sou brasileira. Não puxo conversa, tento ficar mais na minha.” A “aparência europeia” protege-a. Confundem-na com portuguesa: “E quando percebem que sou brasileira, o tratamento muda.”
A Associação de Pesquisadores e Estudantes Brasileiros (APEB) em Coimbra desvaloriza. Num curto e-mail ao P3, afirmam ter conhecimento de “determinados casos” de preconceito na “vida universitária em Coimbra”, mas “não somente a brasileiros”. No entanto, em caso de denúncia, procuram “verificar a veracidade da ocorrência, dando o auxílio necessário para solucionar o problema”; casos mais graves são encaminhados para o consulado, que “se disponibilizou a resolver tais situações”. À Lusa, Fernando Câmara, presidente da APEB, afirmou que "existem casos isolados, mas frequentes" de discriminação, sendo que "os estudantes de mobilidade estão mais propícios a serem vítimas dessas atitudes".
As telenovelas também têm culpa
Como combater os estereótipos? D. diz que o caminho é a educação, em casa e na escola. E viajar. “As pessoas mais abertas que vejo são as que conhecem um pouco do mundo.” Mas também aponta o dedo ao próprio país, à cultura que é “vendida” para Portugal e que ajuda a “propagar estereótipos” — a começar nas telenovelas (com a mulher altamente “sexualizada” e o homem como “traficante”) e a terminar na música (“funk sertanejo” em vez de bossa-nova).
“O Brasil passa a pior imagem possível”, concorda V. Sem isentar responsabilidades ao país onde nasceu, a jovem acredita que a razão destes preconceitos em Portugal tem a ver com uma questão de valorização nacional. “Por questões históricas, há muito a questão da defesa do território. O McDonald's aqui, por exemplo, faz questão de dizer que apoia a indústria nacional. (...) Como os brasileiros falam a mesma língua, os portugueses sentem-se desvalorizados. Como reforçar a superioridade? Inferiorizando.”
O próprio Brasil está a mudar e os brasileiros mudam com ele — o que deveria mudar a imagem que têm por cá, reclama D.. “Desde há quatro anos que vejo muitos brasileiros a viajar pela Europa, a estudar fora, a falar inglês.” Para V., o crescente respeito que o país tem inspirado pode influenciar a imagem dos emigrantes. Como combater? É um “processo”: “Ouvir as pessoas. Não fazer generalizações. Dizer que existem brasileiros bons, que não são todos desonestos, prostitutas, etc.”
Artigo actualizado às 15h49 de 17 de Janeiro.