Ariel Sharon (1928-2014): A audácia política ou o papel do indivíduo na História
Ex-primeiro-ministro de Israel morreu aos 85 anos.
No dia 15 de Setembro de 2005, Sharon foi o orador mais aplaudido na 60.ª Assembleia Geral da ONU, onde declarou que os palestinianos têm “direito à liberdade e à soberania nacional”. Dois anos antes, tanto as palavras como a apoteose eram impensáveis. A retirada de Gaza, anunciada em Abril de 2004 e realizada em Agosto de 2005, marca a separação das águas.
O “falcão” Sharon, que fez construir centenas de colonatos, era o primeiro líder israelita a ousar começar a desocupação. Ao longo dos dramáticos anos 2004-2005, a esquerda e o campo da paz adoptaram-no como líder, enquanto colonos e fanáticos religiosos que antes o idolatravam – “Arik, rei dos judeus!” – pediam a sua morte. Ele, que sempre vivera protegido por causa de árabes, passou a viver sob reforçada segurança por causa de judeus.
Desapareceu há oito anos, a meio do caminho. Após um primeiro AVC, em Dezembro de 2005, sofreu no dia 4 de Janeiro de 2006 um derrame cerebral arrasador. Passou oito anos em estado vegetativo, até morrer neste sábado. Tornou-se uma figura do passado. Benjamin Netanyahu teve um lapso revelador. Em Setembro de 2011, homenageou Sharon dizendo: “Que a sua memória seja abençoada.” Perante a estupefacção da assistência, emendou: “Que viva muitos anos!”
Dois anos mudaram o seu lugar na História. Até aí, a imagem de Sharon era a da brutalidade e a de adversário de qualquer plano de paz. Amos Oz disse um dia que fugiria de Israel se ele chegasse ao poder. Quando o ouviu dizer que a ocupação era “uma tragédia para os ocupados e ocupantes”, não pôde crer no que ouvia. Quando ele falou na retirada de Gaza, pensou: é uma artimanha. Reconheceu em 2006: “Eu estava errado.”
Outro escritor, David Grossman, observou que Sharon “passou de ser um dos homens mais odiados pelos próprios israelitas para se erigir em líder aceite e amado pela maioria da população, uma espécie de pai com autoridade, que deve ser seguido de olhos fechados. (...) Nos últimos anos, alcançou um estatuto que só David Ben-Gurion teve nos anos 1950: o de líder incontestável.”
O guerreiro
Ariel Scheinermann nasceu em 1928, em Kfar Malal, vale de Sharon, filho de sionistas vindos da Ucrânia e da Bielorrússia. Adoptará o apelido Sharon. Uma expressão da mãe, repetida na infância e quando já ele era político, resume a mentalidade em que foi educado: “Não acredites numa única palavra que os árabes te digam.”
Aos 14 anos, alista-se no Haganah (milícia trabalhista). Faz todas as guerras desde a independência, em 1948. Na Guerra do Sinai (1956), evita à tangente o tribunal marcial, pois desobedece às ordens e força a tomada do desfiladeiro de Mitla, onde morrem 40 soldados israelitas. Na Guerra dos Seis Dias (1967), já general, conquista o Sinai, numa manobra que se tornará um “clássico” nas academias militares.
Foi também o homem dos “trabalhos sujos”. Cometeu crimes de guerra. Em 1953, Ben-Gurion aprova a ideia de criar um corpo de elite, a “Unidade 101”, para neutralizar as incursões árabes. Era comandada por Sharon. O massacre de Qibbiya, na Cisjordânia – 69 árabes mortos –, leva à sua dissolução. Mas Ben-Gurion protege-o. Em 1970, Moshe Dayan manda-o “restabelecer a ordem” em Gaza. Fá-lo com a habitual brutalidade e inaugura “técnicas” que virão a ser usadas na repressão das Intifadas, como a retaliação maciça sobre as famílias dos militantes. Será também ele quem, após a paz com o Egipto (1979), Menahem Begin encarrega de despejar os colonos do Sinai: fá-lo sem estados de alma.
A sua hora chega com a Guerra do Yom Kippur (1973). Numa manobra audaz, a sua divisão de blindados atravessa o Suez e cerca o 3.º Exército egípcio, mudando o curso da guerra.
Torna-se, enfim, herói nacional e entra na política. É eleito para o Knesset. Serve Yitzhak Rabin como conselheiro de segurança. Mas, perante um Partido Trabalhista em declínio e que não satisfaz as suas ambições, alia-se a Menachem Begin, chefe da direita radical. Fundam o Likud e ganham as eleições de 1977.
O colonizador
É ministro da Agricultura (1977-81) e da Defesa (1981-83). Torna-se o grande promotor dos colonatos. Não por messianismo: para ele, a anexação visa a segurança e o controlo da água. Em 1982, convence Begin a intervir na guerra civil do Líbano, excede as ordens e avança até Beirute, para desmantelar a OLP de Arafat e fazer uma aliança estratégica com os cristãos libaneses.
Esmaga o exército sírio: vitória militar, catástrofe política. Os massacres nos campos palestinianos de Sabra e Shatila, por milícias libanesas cristãs, provocam a indignação internacional. Em Israel, a Comissão Kahn acusa Sharon de “responsabilidade indirecta”. Begin tira-lhe a Defesa. Será Shimon Peres a recuperá-lo, fazendo-o entrar nos governos Likud-Labour. Após a eleição de Rabin (1992), é um virulento crítico dos Acordos de Oslo. Quando o Likud volta ao poder (1996), Netanyahu nomeia-o para as Infra-estruturas e, depois, para os Negócios Estrangeiros.
A sua imagem sempre foi controversa. Ben-Gurion considerava-o mentiroso, defeito imperdoável num militar, pois a mentira é privilégio do político. Begin resistiu a nomeá-lo ministro da Defesa, dizendo que Sharon era capaz de cercar o Knesset com os seus tanques.
A vida pessoal combina mistério e drama. A primeira mulher, Margalit, morre num acidente de viação em 1962. Depressa se casa com a cunhada, Lily, a sua paixão, mãe de Omri e Gilad Sharon. Lily morre de cancro em 2000. Gur, o filho mais velho (de Margalit), morrera em 1967, aos 11 anos, a brincar com uma arma do pai.
Sharon reunia os favoritos no seu rancho no Sinai, o maior de Israel, comprado por amigos americanos. Não era escrupuloso em questões de dinheiro e achava normal a corrupção: será o filho Omri a sujar as mãos para financiar as suas campanhas.
Gaza e o Muro
A queda de Netanyahu, em 1999, dá-lhe numa bandeja a liderança do Likud. Passa a combater as iniciativas de paz do trabalhista Ehud Barak. A 28 de Setembro de 2000, faz uma provocatória visita ao Monte do Templo, em Jerusalém, que serve de detonador à segunda Intifada. Barak perde o controlo da situação e Sharon ganha as eleições de Fevereiro de 2001.
Começa pelo que a opinião pública lhe pede: repressão do terrorismo. Reocupa a Cisjordânia e Gaza. Confina Arafat no seu bunker de Ramallah e desmantela a Autoridade Palestiniana. Provoca novas eleições em 2003, que vence triunfalmente. “Ao chegar ao poder, tomou consciência de que os colonatos eram um erro de proporções históricas que punham em causa a segurança e a economia de Israel”, resume o politólogo Yarom Ezrahi. Reconhece a ameaça demográfica: dentro de uma ou duas décadas, uma maioria árabe afogará Israel.
Age em dois tempos. No primeiro mandato, reprime. No segundo, aplica o programa trabalhista. Começa a construção do “Muro” – a que antes se opusera, porque significava uma fronteira. Em Dezembro de 2003, anuncia o “plano de separação unilateral”: como não há “interlocutor palestiniano”, será Israel a traçar as “fronteiras definitivas”. Inverte o axioma trabalhista: “Só a paz garante a segurança”. Para Sharon, “só a segurança garante a paz”.
Esta viragem conduz à retirada de Gaza e ao desmantelamento dos seus 21 colonatos. A esquerda adopta-o como líder, pois “só Sharon o pode fazer”. De facto, despreza as ameaças e neutraliza colonos e religiosos messiânicos que faziam o bluff da guerra civil. Os israelitas seguiram-no, por acreditarem que só faria concessões por necessidade e não por ideologia. Sabia lidar com os “medos” de Israel.
O unilateralismo
A retirada de Gaza foi uma “jogada táctica com efeitos estratégicos”. Quebrou o isolamento de Israel, reforçou a coesão interna, consolidou a aliança americana e enfraqueceu a Autoridade Palestiniana. Foi o corte de um nó górdio, o fim da mitologia do Grande Israel, abrindo caminho à criação de um Estado palestiniano. Era também a vitória do Israel laico e democrático sobre os ultra-religiosos e messiânicos.
A política unilateralista de Sharon cedo foi criticada. Seria uma forma de congelar as negociações de paz. O seu conselheiro Dan Weissglass explicou-o cruamente: “Quando se congela o processo político, evita-se a discussão da criação de um Estado palestiniano e de assuntos como refugiados, fronteiras ou Jerusalém.” Sharon apostava na “separação” para criar uma paz de facto e não para resolver o conflito histórico – algo em que não acreditava. Dirá um dos seus críticos que se limitava a tirar os palestinianos das vistas de Israel, escondendo-os “por trás do Muro”.
Pouco interessam as motivações de Sharon, respondeu no diário Haaretz o analista Ari Shavit. “Do ponto de vista da esquerda, a questão é simples: apenas Sharon o pode fazer. Se Sharon não for capaz de evacuar os colonatos em 2005, ninguém o será. E a ocupação tornar-se-á no estado normal das coisas. Não há alternativa a Sharon.” Outro analista acrescentou: “A campanha de intimidação contra Sharon não resultará. Ele não tem medo.”
Dez anos depois, o debate não tem conclusão. Ou melhor, foi uma década perdida: nem desocupação nem negociação. Sem Sharon, o unilateralismo conduziu ao impasse e, como efeito perverso, fez crescer os colonatos e o fanatismo. O seu sucessor, Ehud Olmert, pensou ir mais longe, “mas não era Sharon”. Netanyahu, que nunca teve coragem política, optou pelo imobilismo. Está agora sob pressão americana para negociar. A sombra de Sharon continua, como fantasma, a pairar sobre as “difíceis opções” que – diz John Kerry – Israel em breve terá de fazer. Muitos perguntam: “Que faria Sharon nas actuais circunstâncias?”
O legado
Ariel Sharon nunca foi um visionário nem um grande estratego. Era um génio da táctica, “um improvisador natural, supremamente adaptável às circunstâncias, capaz de fazer viragens e mudanças dramáticas na sua política e na sua abordagem”, escreve o jornalista Chemi Shalev. Foi um homem corajoso, brutal e inimitável. “Nunca parava num sinal vermelho”, resume Uzi Benziman, um dos seus biógrafos. Só jogava segundo as regras que ele próprio estabelecia. “O único deus em que acreditava era o que via todos os dias ao espelho.” Foi o “último dos israelitas” – dos políticos e guerreiros que fundaram Israel.
Sharon não deixou uma “solução”. Talvez o seu legado seja simplesmente o exemplo da audácia política, sem a qual tudo parece impossível.