As formigas-obreiras não são apenas versões em miniatura e sem asas das suas rainhas
Uma equipa luso-francesa descobriu diferenças morfológicas inesperadas entre as formigas-obreiras e as formigas-rainhas – e, mais surpreendente ainda, entre as formigas-rainhas de espécies diferentes.
Os seus resultados invalidam em particular a ideia, geralmente aceite, segundo a qual as formigas-obreiras são apenas versões em ponto pequeno e sem asas das formigas-rainhas – ou seja, insectos sem qualquer especificidade anatómica que as prepare para a sua vida futura.
Numa colónia de formigas, a rainha, grande e com asas, é a única reprodutora, garantindo a perpetuação do ninho. Uma vez fundada a colónia, passa a vida enterrada nas profundezas do solo, enquanto as obreiras, mais pequenas e sem asas, asseguram a manutenção da colónia e a alimentação das larvas.
E é precisamente a arquitectura torácica extremamente especializada das obreiras – muito diferente da das rainhas, como os investigadores descobriram agora – que lhes permite caçar e carregar presas e plantas muitas vezes muito mais pesadas do que elas. “Apercebemo-nos que era um pouco tonto imaginar que as obreiras não seriam elas próprias organismos especializados”, disse ao PÚBLICO Roberto Keller, autor principal do estudo.
Por que é que um aspecto aparentemente tão essencial da morfologia destes insectos sociais permanecera até aqui desconhecido? “Parte da resposta é que estudar a morfologia dos animais já não é muito comum”, responde Keller. “Pouca gente tem tempo ou interesse para isso. A última comparação morfólogica formal entre formigas-obreiras e rainhas foi feita em 1886.”
De facto, para tentar perceber por que é que as formigas de um mesmo ninho, que são irmãs do ponto de vista genético, podem ter tão variadas formas, tamanhos e funções, os especialistas têm-se focado muito mais na biologia molecular dos comportamentos do que nas suas condicionantes anatómicas. “Hoje em dia, a ideia dominante é que a compreensão das bases moleculares vai fornecer a derradeira explicação dos fenómenos biológicos", diz Keller. "Claro que a genética é importante, mas uma história científica completa exige também perceber o papel que a morfologia desempenha no funcionamento de um organismo. Nós também queremos perceber as bases moleculares, mas achamos que primeiro é preciso ter a certeza de que percebemos bem os aspectos morfológicos”, explica-nos este cientista de nacionalidade mexicana, a trabalhar em Portugal desde 2008, que observa e estuda as formigas há cerca de 15 anos. E que gosta “de encontrar histórias científicas que têm a ver com história natural”. Como esta.
Os autores compararam 265 obreiras e rainhas de 11 espécies, pertencentes a 21 das 25 subfamílias de formigas conhecidas – algumas actuais, outras já extintas –, recorrendo a exemplares de colecções museológicas e a imagens digitais disponíveis online. E constataram que, na formiga-obreira, o segmento do tórax mais próximo da cabeça – o do pescoço – está muito dilatado e contém poderosos músculos, que conferem força aos movimentos da cabeça e dos maxilares (que as formigas usam para agarrar e manipular objectos). Pelo contrário, nas formigas-rainhas, esse segmento do pescoço é mais reduzido, com músculos menos robustos.
“A nossa análise morfológica mostra que as formigas-obreiras são muito mais do que apenas versões mais pequenas e sem asas das rainhas, e têm um plano corporal que proporciona às suas cabeças uma grande capacidade de resistência e de manobra”, diz Patrícia Beldade, co-autora portuguesa do estudo, em comunicado do IGC.
Mas há mais: é que, conforme o comportamento que irão ter aquando da fundação da sua colónia, logo após o voo nupcial – e que depende da espécie –, a morfologia torácica das próprias rainhas também pode ser diferente.
Na maioria das espécies de formigas – incluindo aquelas que, em Portugal, povoam quintais e jardins –, a rainha enterra-se logo e alimenta sozinha a primeira geração de larvas, digerindo para isso os músculos das suas asas. Mas existem certas espécies tropicais nas quais, durante essa primeira fase, a própria rainha – ainda sem ninguém para a ajudar nessa tarefa – comporta-se como uma obreira, caçando para alimentar a sua prole. Ora, no primeiro caso, os cientistas constataram que o segmento das asas é grande e o do pescoço extremamente reduzido, enquanto no segundo, os dois segmentos são de tamanho intermédio, mais próximo do das obreiras.
“Isto foi uma total surpresa, porque ninguém tinha percebido que existem dois grandes grupos de rainhas”, diz-nos Keller. E foi um desses episódios que são “bonitos quando acontecem em ciência”, porque transformou algo que para ele era uma simples “curiosidade” numa descoberta importante.
Tudo aconteceu na sequência de uma conversa quase casual que Keller teve com o terceiro co-autor do estudo, o belga Christian Peeters. “Peeters foca-se muito no comportamento nas colónias de formigas. Um dia, eu estava a falar com ele e mostrei-lhe as diferenças de morfologia que tinha visto nas rainhas. E ele deu logo um salto e disse-me que essa ‘curiosa’ diferença morfológica correspondia a comportamentos diferentes que ele já tinha observado.”
Um resultado importante, dizem os autores, porque pode permitir prever, com base na morfologia, o comportamento da rainha em espécies de formigas ainda muito pouco conhecidas.