Crónica de uma emoção inesperada
O funeral de Eusébio foi uma homenagem popular a um jogador a quem chamaram “rei”, no cemitério do Lumiar, mas que deixou uma enorme sensação de perda. “Ficámos tão sós sem ele”, ouviu-se dizer nas ruas de Lisboa. Todos conheciam o trajecto da cerimónia, mas ninguém esperava sentir assim essa perda.
O cortejo saiu do Estádio da Luz e percorreu Lisboa. Um turista que não soubesse a notícia seria levado a pensar que um novo chefe de Estado entrava na cidade, depois de uma revolução. Motos da polícia, vários autocarros repletos de personalidades, seis furgões funerários cheios de flores, dezenas de carros oficiais e o veículo negro e baixo, aerodinâmico, futurista, transportando o féretro. A imponente caravana avançou pelo Campo Grande, atravessou o Saldanha, desceu a Avenida da Liberdade, entre uma multidão que aplaudia. Cruzou a Baixa, parou na Praça do Município, para uma cerimónia curta com o presidente da câmara e parada policial.
Conhecendo de antemão o percurso, muitas pessoas tinham-se posicionado em locais de boa visibilidade. Para essas, não foi surpresa o funeral ter surgido na esquina. Inesperado foi o que sentiram. “Não contava que fosse assim. Nunca pensei ficar tão emocionada”, disse uma mulher tentando conter as lágrimas, Clotilde, 55 anos, empregada de balcão. “Ele é o herói do povo, um herói de todos nós”, levantou ela a voz abafada pelo rugido das dezenas de motards que arrancavam já atrás dos carros funerários. “Ficamos agora tão sós sem ele”, disse ainda Clotilde com a voz cheia de pânico. “Já não há ninguém assim, é uma perda tão grande”.
Rua da Prata acima, para percorrer de novo a Avenida da Liberdade, agora ainda com mais gente, mais confusão. O cortejo deixou de ser oficial, juntaram-se-lhes muitos carros e motos, buzinando, quatro piscas ligados, ignorando os semáforos vermelhos, com a anuência da autoridade.
“Eusébio, Eusébio, és o nosso rei”, ouviu-se cantar à chegada à Igreja do Seminário da Luz. No interior, algumas personalidades já aguardavam. Outras chegaram depois. Presidente da República, primeiro-ministro, dirigentes desportivos de vários clubes. A cerimónia, celebrada por Vítor Melícias, decorreu à porta fechada. O povo, cada vez em maior número, ficou cá fora, contido por barreiras policiais.
“Viemos aqui por amor ao Eusébio”, disse Joaquim Matos, de 63 anos. “Pela simplicidade dele, a sua força”. Joaquim e a mulher, Lurdes Matos, também de 63 anos, vivem em Tercena, Sintra. “Mas não hesitámos nem um momento em vir aqui”, dizem. “Não podíamos faltar”. Ele, funcionário público reformado, é alentejano, e ela é de Lardosa, Castelo Branco. Foi lá, ainda criança, que conheceu Eusébio. Não em pessoa, mas através do rádio da taberna, onde o pai ia ouvir os relatos. “O som estava muito alto, para que toda a aldeia ouvisse. Lembro-me tão bem daquele grito ‘Gooooolo de Eusébio!’ Era uma alegria”. E é em nome dessa imagem que Lurdes veio. O clamor que incendiava a imaginação num país estrangulado. “Goooolo de Eusébio!”
Joana sente esse encantamento por telepatia. Ela, que pratica dança e estuda arte, é capaz de sentir o que não vê nem compreende completamente. “Vim dizer um último adeus ao Eusébio”, explica com a lisura dos seus 18 anos. “O meu avô pediu-me para estar aqui, em vez dele, que ficou doente”.
Joana Galante veio de Almada até aqui porque o avô chorou. Ele que via todos os jogos de Eusébio, chegou a ir a Roma assistir a um desafio do Benfica, e agora não conseguiu estar presente. “Estou aqui pelo meu avô e pelos meus pais”, disse Joana. Tudo o que faço é por eles. Ela que queria estudar pintura, mas vai seguir design de moda, para poder trabalhar com a mãe, que é costureira. “Eu quero dar um futuro aos meus pais”, disse Joana, para quem Eusébio representa essa inversão dos valores hoje dominantes. “Era um excelente jogador, mas também um homem generoso, que fazia as coisas por amor. Hoje não vejo essa atitude nas pessoas da minha idade. Só os motiva o dinheiro e a ascensão social. Eusébio lutou pelo seu país. Que ainda por cima não era o dele…” Paulo, que estava a ouvir, defende Joana: “Ela não era nascida. Não sabe que Moçambique era uma colónia, e por isso Eusébio era português”.
Paulo Martins, 48 anos, bancário, tem uma explicação mais céptica para a nobreza de Eusébio: “Nunca o deixaram ser ambicioso. Se o Salazar tivesse permitido que ele fosse para o estrangeiro, ele teria mudado. Hoje já não é possível haver pessoas assim”. Ao lado, João Cardoso, 38 anos, proprietário de uma pequena empresa de construção civil, repete, para que as teorias do amigo não ensombrem o momento: “Era um homem bom. Não era vaidoso, era um homem bom”. Paulo cede: “Eusébio entrou nas nossas vidas como se fosse um de nós. Há pessoas da nossa família cuja morte não se sente tanto”.
A missa terminou, e o funeral seguiu para o cemitério do Lumiar, por entre ruelas de bairros pobres. Começou a chover torrencialmente. As individualidades entraram nos veículos, mas há agora uma multidão que segue Eusébio a correr. Figuras de pijama, mulheres a cantar assomam às janelas.
A chuva fez a sua selecção natural, o cortejo é agora composto pela arraia miúda. Rapazes com blusões baratos de cabedal, raparigas de saias de ganga e leggings pretos. As claques gritam, alucinadas: “Eusébio, Eusébio, és o nosso rei!” O nome do atleta idolatrado, reduzido à sua pureza de herói, soa como o de um guerreiro no grito viril e desesperado da claque. “Eusebiuuuuu. Eusebiuuuuu. És o nosso rei!”
As pessoas enterram os pés na lama, apertam-se, tropeçam, encharcadas. Correm atrás de Eusébio como se fosse a última ilusão. O rei negro e pobre de um mundo perdido para sempre. “Ele é como nós”, diz uma mulher mais velha do que Eusébio, correndo atrás do carro funerário. “Somos todos irmãos”, repete várias vezes, para justificar ter vindo.
A multidão pisa as campas numa confusão de lama, canta o hino nacional, misturado com o hino do Benfica, palavras de ordem, palmas, enquanto o caixão desce à terra. Sabia-se que Eusébio morreria um dia, mas ninguém pensou que isso se sentiria assim.