Eusébio – o adeus do menino que conquistou o mundo com uma bola nos pés
É difícil falar de Eusébio. Não só porque o dia é de profunda tristeza para todo o desporto mundial, mas porque já tudo foi dito sobre esta figura ímpar do futebol internacional. Na televisão, na rádio, em artigos de revista ou de jornais, em livros e até na internet, pouco ou nada terá sido deixado por dizer sobre aquele que muitos ainda consideram o melhor futebolista português de todos os tempos. A geração do meu pai, por exemplo, que acompanhou de perto Eusébio, benfiquistas e não-benfiquistas, tem muitas dificuldades em imaginar um futebolista superior ao Pantera Negra.
Devido à idade que tenho, é evidente que nunca vi Eusébio jogar em direto. Porém, tive o ensejo de o ver indeferidamente, ao serviço do Benfica e da Seleção Nacional, bem como já o analisei com alguma profundidade na minha atividade profissional através das mais variadas fontes impressas. Por isso tive oportunidade de o ver brilhar na sua primeira época de águia ao peito, em 1961/62 e, entre outras competições, no Mundial de 1966 que o consagrou internacionalmente como um dos melhores futebolistas mundiais dessa década.
Devo dizer, dirigindo-me sobretudo às gerações mais novas, que Eusébio foi um extraordinário futebolista, que jogaria em qualquer equipa mundial e em qualquer tempo. A sua capacidade de drible, a sua velocidade, a sua intuição, enfim, a articulação do seu corpo com o esférico em relação ao espaço, dotavam-no de características únicas no panorama do futebol mundial. Eusébio era uma força da natureza.
Ao contrário de muitos dos jogadores de hoje, que são “fabricados” nas canteras, nas academias e nas escolas de futebol, de forma a atingirem um nível muscular e atlético “perfeito” que os capacitem a atingir as performances desejadas, Eusébio foi futebolisticamente formado nos bairros de lata de Moçambique, em terrenos baldios, jogando muitas vezes com outros objectos que improvisavam a carência de uma bola de futebol.
É conveniente recordar que Eusébio chega a Lisboa a 17 Dezembro de 1960, com 18 anos, à beira de completar 19, sem a mínima noção do já exigente futebol europeu. A única coisa que possuía era uma habilidade em grande medida inata para jogar futebol. Aquilo que Eusébio trazia para o futebol do “velho continente” era a sabedoria intuitiva do seu corpo – essa inteligência que não se mede nos QI mas na movimentação e na capacidade de improvisação do seu corpo; essa inteligência do organismo na sua totalidade, feita do pulsar, das emoções e dos sentimentos, vinda da sintonia perfeita entre as estruturas cerebrais não-conscientes com o corpo na sua unicidade. Nada em Eusébio tinha sido transformado. Tudo nele era talento em estado puro. Era como se todas as suas células respirassem futebol.
Os feitos que atingiu ao longo da sua carreira profissional, ao serviço do Benfica e da Selecção Nacional atestam estas palavras: entre 1961 e 1977 marcou 757 golos oficiais, 320 no Campeonato Nacional (7 vezes melhor marcador nesta competição), em 313 jogos, 57 nas competições da UEFA e 41 por Portugal, em 64 desafios, numa altura, é bom recordar, em que se realizavam bem menos jogos do que hoje em dia, seja nas provas da UEFA, seja nas da FIFA. Venceu 11 Campeonatos, 5 Taças de Portugal e uma Taça dos Campeões Europeus, tendo sido finalista em mais 3 ocasiões. Individualmente conquistou duas Botas de Ouro – 1968 e 1973 – e uma Bola de Ouro, em 1965, troféu que o consagrou como melhor futebolista mundial. Neste prémio ficou ainda por duas vezes em segundo lugar, em 1962 e 1966. Em 1966, no Mundial de Inglaterra, foi o melhor marcador da Prova com 9 golos em 6 jogos. Por sua vez, como culminar de uma carreira recheada de feitos improváveis, em 1999 a International Federation of Football History and Statistics, organismo coadjuvante da FIFA, elegeu-o o 6.º melhor futebolista de sempre da Europa e o 9.º do Mundo. Tudo isto foi conquistado, direta ou indiretamente, ao serviço do Benfica que, também é bom salientar, embora fosse um colosso internacional na década de 60, estava inserido num campeonato que estava longe de ser, como hoje, o palco primordial do futebol europeu.
São números que falam por si, mas que não dizem tudo. Um futebolista é muito mais do que os números que atinge. Eusébio não era só um goleador como também um municiador de golos para os seus colegas, efectuando muitas e decisivas assistências. Não era um ponta de lança típico (ao contrário de Águas ou Torres, por exemplo). Era um vagabundo, que jogava atrás do homem mais avançado, partindo de trás em fulgurantes arrancadas, criando desequilíbrios que não raras vezes davam em golo.
Eusébio fora o menino de Mafalala que conquistara o mundo com uma bola nos pés. O seu futebol, feito de improviso e rebeldia, de malícia e da arte do engano, pareciam falar da sua meninice em Moçambique. Nunca teve muito jeito com as palavras e não se sentia à vontade em frente às câmaras. Não precisava. Comunicava com o corpo em movimento nos estádios de futebol, através das fintas, dos golos, dos chutos fulminantes, e com o sorriso genuíno que esboçava sempre que tinha uma bola nos pés. Era um futebol, simultaneamente, ingénuo porque puro e inocente, retrato figurado de Eusébio quando se apresentou em Lisboa, mas de um rendimento extraordinário, como nos mostram os números que atingiu.
A partida de Eusébio inundou de tristeza todos aqueles que gostam de futebol. Não foi só Portugal que perdeu um herói. Foi o Planeta do Futebol que ficou, hoje de madrugada, indubitavelmente mais pobre. Para a posterioridade ficam os golos, as arrancadas com a bola colada ao pé e conduzida pelo seu corpo felino, serpenteante, a alegria estampada na cara sempre que jogava e a genuinidade do seu futebol (e subsequentemente dele próprio) que trazia sons, cores e imagens de uma terra africana situada junto ao Oceano Indico de nome Moçambique, país onde afinal nasceu Eusébio da Silva Ferreira – o menino que com uma simples bola trouxe alegria a milhões de pessoas por esse mundo fora.
Historiador doutorando FCSH-UNL