O trabalho não é uma mercadoria

Sob o pretexto do “combate ao desemprego” tem prosseguido a recorrente desregulamentação dos direitos dos trabalhadores.

Os recentes trabalhos na revista 2 do PÚBLICO (22 e 29 de Dezembro) sobre escravatura no século XXI, não obstante a especificidade e gravidade limite das situações aí tratadas, tornam mais pertinente a primeira frase da mensagem (“Os desafios éticos do trabalho humano”) da última Conferência Episcopal Portuguesa (CEP), Fátima, 14/11/2013: “Um dos problemas mais graves que hoje atingem o nosso país diz respeito à situação do mundo do trabalho.”

Um dos vários trechos a relevar desse documento é o de que “não é qualquer trabalho que satisfaz as exigências da dignidade humana”.

De facto, há uma tendência para se esquecer que, associados ao trabalho, estão valores humanos e sociais fundamentais, designadamente, a vida, a integridade física, a saúde, a família, a educação, a cultura, a inserção e integração social, a cidadania. São valores condicionantes da dignidade de qualquer pessoa, quer como tal, quer como cidadão, mas cuja concretização depende da efectivação de inerentes direitos sociais do (no) trabalho legalmente consagrados.  

Ora, é quanto a isto que é especialmente pertinente uma outra afirmação da mensagem da CEP: “Não pode passar despercebida a tendência para promover o emprego através do cerceamento dos direitos dos trabalhadores.”

É que, sob o pretexto do “combate ao desemprego” (só) pela via da “flexibilização do mercado de trabalho”, pelo menos de há dez anos a esta parte (dois códigos do Trabalho e muitas outras alterações legislativas avulsas), o Governo (este e anteriores) tem prosseguido à recorrente desregulamentação dos direitos dos trabalhadores, o que, objectivamente, consistiu no seu cerceamento (diminuição ou eliminação).

De facto, “não pode passar despercebido” que o efeito “endógeno” do desemprego nos locais de trabalho (onde, na “penumbra” das empresas e até da administração pública, muitas vezes, é, por várias formas, utilizado como instrumento de “gestão” pelo medo), associado a essa crescente desprotecção legal (e consequente fragilização nas relações de trabalho) dos trabalhadores, é suporte para a diminuição real (e até já nominal) dos salários, degradação das condições de trabalho e, objectiva e subjectivamente, desumanização do trabalho.

E, todavia, não se vê da parte do Governo uma posição clara de firme rejeição das exigências de prosseguimento dessa senda de desregulamentação de direitos sociais associados ao trabalho que a troika (especialmente o FMI e a Comissão Europeia) continua a reafirmar (conforme recentes declarações dos representantes do FMI e da CE, srs. Subir Lall e Olli Rehn).  

“O trabalho constitui uma dimensão fundamental da existência do homem sobre a terra, não apenas enquanto meio de sustento, mas também enquanto actividade inerente ao processo de desenvolvimento de cada pessoa e da sociedade”, lembra a mensagem da CEP (ancorando-se na Encíclica Laborem Exercens, de 1981), relevando, assim, a natureza essencialmente humana e a centralidade social do trabalho.

Daí que as situações de escravatura denunciadas pelo PÚBLICO sejam apenas a parte mais escandalosa e visível do que a CEP considera “um dos problemas mais graves que atingem o nosso país”, isto é, “a actual situação do mundo do trabalho”, no que esta tende para a desregulamentação e desregulação (e, por isso, “cerceamento”) dos direitos sociais, logo, para a cada vez maior desumanização e mesmo mercantilização do trabalho. Com crescente dissociação dos referidos valores sociais que lhe estão associados.

Por isso, para além dos “desafios éticos do trabalho humano” que, concretamente, suscita e projecta, a mensagem da CEP “desafia” também que se (re)lembre (e pratique) algo que, no actual contexto social e político, infelizmente, volta a fazer cada vez mais sentido.

Concretamente, aquilo que, vai fazer 70 anos no próximo dia 10 de Maio, no âmbito da 26.ª Conferência da Organização Internacional do Trabalho (cujo actual conceito central da sua acção em todo o mundo é o “trabalho digno”), foi, em Filadélfia, reafirmado como o primeiro dos princípios fundadores desta organização: “O trabalho não é uma mercadoria.”

Inspector do Trabalho (aposentado)
 
 
 
 
 
 
 

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