O vermelho da papoila

A Papoila e o Monge, o mais recente livro de poesia de José Tolentino de Mendonça, é talvez o seu melhor livro. É um volume de haikus em seis capítulos (Escola do silêncio; Vida monástica; Guia para perder-se nos montes; Amanhecer na primeira cidade; Amanhecer na segunda cidade; Livro das peregrinações) e contém toda a leveza, graça e perspicácia do melhor do género. Deriva de uma viagem ao Japão feita por um grupo que incluía o poeta. A capa, alusiva, é aliás muito bonita: uma xilogravura de Hokusai. O livro, confessa o poeta, deve tanto a Bashô quanto a Jack Kerouac, esse mesmo, o emblema da Beat Generation, autor de Pela Estrada Fora, mas também de Book of Haikus, belíssimos, que este sorveu delicada e sofregamente.

O género, antiquíssimo, é oriundo do Japão: “O velho tanque/ uma rã mergulha,/ barulho de água” é um exemplo do mestre Bashô. Assinala uma visão do mundo indutora de textos espantosos, (re)união num instante de sensações de repente cruzadas, provindas da atenção a traços exaltados da natureza, do ir e vir das estações, da capacidade de atenção que se exarceba no caminho desperto da intensificação (trata-se de intensidade e não de expansão). Se este “método” convém a muitos, muito mais a Tolentino que, ousaríamos dizer, se reencontra. Transforma e propaga o haiku a uma peregrinação espiritual do ser, ou espiritualização em devir do mundo, da vivência desse mundo por um sujeito sem sujeito que se desfaz do eu, seguindo por vezes uma vida monástica. Mas este caminho não detém naturalmente o exclusivo, pode devir comum.

São três versos, três unidades métricas fixas. Classicamente: cinco, sete, cinco pés. Relançado de novo pela modernidade, hoje reúne cultores de várias partes. O seu risco é a aparente facilidade. Mesmo em Portugal teve adeptos, maiores e menores (de Venceslau de Morais ou Camilo Pessanha, os dois sensíveis ao Oriente, e ao Japão particularmente, a Casimiro de Brito, Eugénio de Andrade, Albano Martins, Jorge Sousa Braga e Carlos Poças Falcão, passando pelas recriações de Herberto Hélder). Tolentino propõe um haiku ocidental. Alarga o leque temático, relançando sempre o elo com a natureza, que, com o seu eterno retorno, renova incessantemente o elo primordial, originário; por isso o seu caminhar é modesto: a espontaneidade, um perfil de árdua simplicidade serão sempre o seu laborioso e escondido lema. Três versos destinados a sacar a beleza de um instante, a desencadear emoções, não sentimentos. Diferindo já um pouco da sua natureza original, mas mantendo até por isso com ela uma contiguidade essencial, se bem que recriada, Tolentino imiscui no haiku a a experiência de Deus, a evidência de Deus e a transcendência no que parecia ser só presença, imanência; então, a percepção do sagrado ressalta num traço a-subjectivo do mundo, num não-objecto, na percepção que se impõe de uma flor ao longe ainda sem nome, antes do nome, uma partícula intensiva de um corpo, ponto que inesperadamente começa a cintilar e que o sujeito sem sujeito (o poeta), tocado, transporta-o para a escrita de três versos. “Queres saber o que rezo nas orações?/ troncos secos, gravetos/ cercas e barro vermelho.” Idealmente tudo seria sem mediação, tal e qual. Por isso o elogio da espontaneidade, do que é simples. Outro exemplo, entre tantos, particularmente belo: “O riacho incansável/ através do matagal/ o monge segue-o assobiando.”

O traço entra quando quer, quando se faz reparar, afasta-se quando quer. A graça não nos pode estar sempre a ser dada, se não nunca saberíamos reconhecê-la. Torna presente, “narra o que acontece” sem apropriação, experiência pura que a linguagem mesmo assim trai. A “história relata o que aconteceu”, pressupõe o eu, a sequência, o tempo. E o eu, a consciência são um impedimento espiritual do ponto de vista da revelação da vida. Em muito estes haikus retomam o modelo original, mas paralelamente, ou, se quiserem, intersticialmente, mapeiam outro caminho, que abarca o contemplar, o subtrair e levar ao silêncio o eu. Paradoxo insolúvel, ao mesmo tempo que irrenunciável. Nunca se está à altura. O absoluto não poderia ser dito se não de outro absoluto que então se interromperia.

O haiku, pelo número escasso de letras de que dispõe, contrai o que é dito, tornando sensível, a crepitação do não dito. Deixa em aberto. As primeiras 47 páginas rondam o som do silêncio, tão distinto do vazio, na medida em que o haiku não provém ou produz sentimentos mas sim sensações, experiência. “A linguagem habitual não pode/ dar voz ao que permanece/ aquém e além da representação.” Esse inacabamento mantém activa a roda do oleiro. Entre o sonho e o sono, digamos, numa espécie de hiato, no mais impessoal silêncio, arredada a consciência, a viver sem saber porquê, quando esse silêncio é tal que nem o pensamento o pensa, aí pode tornar-se sensível “o que por palavras nos está oculto”, o que crepita na sua própria intimidade, inacessível mas premente. De tempos a tempos, “a luz / de uma lâmpada”.

Estes versos são uma espécie de terreno liso, literalmente sem pontuação. Rio que arrebata e indistingue tudo, que faz comungar com tudo. Rio também de alegria e de risos. O monge deitado na neve, tão perto que se (con)funde, “em Deus tudo é Deus/ uma simples folha de erva/ não é menor do que o infinito”. A menor das migalhas.

Não se pense que estamos diante de uma poesia subsumida ao religioso, descarnada. Chamados ao texto são os elementos simples do mundo — insectos, rochedos, a floresta, a cor da papoila vermelha... O monge, presente, não abafa o poético, pelo contrario: exalta-o ou exalta-se nele, indistingue-se. Como o sujeito que aprende a indiferenciar-se. 

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