Sermão do Desacordo aos deputados
Lede, ouvi e entendei. Tomai a decisão óbvia: a desvinculação de Portugal do penoso 2.º Protocolo Modificativo ao AO90 ou, no mínimo, a suspensão imediata do mesmo.
Filipe […] perguntou-lhe: "Tu entendes o que estás a ler?"
Actos dos Apóstolos 8:30
Está agendada para o próximo dia 20, a partir das 10 horas, a apreciação da Petição N.º 259/XII/2, pela Desvinculação de Portugal em relação ao Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa de 1990 (AO90). A petição (disponível aqui http://www.peticaopublica.com/?pi=DPAO2013), que conta já com mais de 15.000 subscrições, mereceu da parte do relator, o deputado Michael Seufert (CDS), um parecer exemplar, que merece ser lido e entendido (http://www.parlamento.pt/ActividadeParlamentar/Paginas/DetalhePeticao.aspx?BID=12378).
No passado dia 27/11, representantes de um Grupo de Trabalho do Senado do Brasil, os professores Ernâni Pimentel e Pasquale Cipro Neto, foram recebidos na Assembleia da República, em audiência conjunta das 2.ª e 8.ª Comissões (http://www.parlamento.pt/ActividadeParlamentar/Paginas/DetalheAudiencia.aspx?BID=96404). Debruçar-me-ei sobre a matéria da 2.ª parte da audiência, de ordem “técnica”, com os deputados que haviam integrado o Grupo de Trabalho para Acompanhamento da Aplicação do Acordo Ortográfico (GTAAAO), cujos trabalhos decorreram entre Janeiro e Julho do corrente.
Na audiência (gravação aqui: https://dl.dropboxusercontent.com/u/25444665/audio-audiencia.zip), os dois professores fizeram críticas contundentes ao AO90. De seguida, coube aos deputados anfitriões colocarem questões e comentários, às quais os visitantes responderam. Ora, importa comentar as intervenções dos deputados.
A pergunta da deputada Rosa Arezes (PSD) sobre declarações do embaixador do Brasil em Portugal, segundo as quais o AO90 seria para cumprir, os representantes do Senado deixaram explícito que foi graças a pressões suas (pontificando nestas o movimento Acordar Melhor (ver http://simplificandoaortografia.com), do qual Ernâni Pimentel é fundador) se tornou possível congregar apoios entre senadores, conduziram à prorrogação do prazo de transição para a vigência plena do AO90 no Brasil (Decreto Presidencial n.º 7875/2012, de 27/12), até 31/12/2015. Essa teria sido a forma expedita de levar a repensar o processo, como era sentimento do Senado, de modo a “melhorar as regras”. Haveria “uma fala do Senado” e “uma fala oficial do Itamaraty” (sede da Presidência da República). Ou seja, há o discurso do poder executivo, diplomaticamente correcto, que alega que o decreto presidencial pretendia tão-só harmonizar os prazos brasileiros com os portugueses, e o discurso do Senado. Esse é, precisamente, o entendimento há muito existente entre os subscritores da petição. As fontes brasileiras confirmam-no.
Ficam na memória, penosamente, intervenções de dois deputados. A primeira, de Gabriela Canavilhas (PS). Entendendo que o processo político está fechado e que o AO90 estaria em vigor, delega para o Instituto Internacional de Língua Portuguesa (IILP) a criação do Vocabulário Ortográfico comum. Em relação à oposição ao AO90, afirma ser de índole ideológica (“ideológico da essência da problemática”, frase enigmática e que não se sabe o que significa). E é aqui que se torna penoso ouvir e tomar conhecimento da insciência da sra. deputada. De tudo quanto foi dito nas inúmeras audiências e audições e exarado por escrito nos abundantes contributos apensos ao trabalho do GTAAAO, e posteriormente no âmbito da apreciação da petição supra, é penoso só ter lido e ouvido o que lhe interessou. Ou, dando-se de barato que leu e ouviu tudo, não deixa de ser penoso que demonstre ter uma cognição condicionada. Assim, não deu atenção, mais uma vez, senão apenas àquilo que lhe interessa. É penoso ouvir invocar a autoridade do sr. embaixador do Brasil, depois de os professores brasileiros terem declarado haver dois tipos de discurso: um falacioso e o outro que corresponde às intenções e aspirações do Senado. A posição de Gabriela Canavilhas só se pode perceber pela dificuldade em assumir o erro da Resolução do Conselho de Ministros n.º 8/2011, de 25/01, à qual está intrinsecamente ligada, enquanto ministra da Cultura à época.
Outra intervenção, que dói ouvir, é a de Luís Fazenda (BE). Também este deputado denota nada ter apreendido do que ouviu e leu. Ainda acredita no mito, amplamente desacreditado, da vantagem da grafia única na era da globalização. Diz que a oposição anti-AO é de ordem identitária. Noutros termos, por nacionalismo. É-o, em parte: quem de bom senso crê numa globalização assente na diluição das fronteiras do que é próprio e típico a cada cultura e nação? Mas tudo o mais o sr. deputado ignorou. Porém, reconhece haver aspectos a “melhorar” e “rever”; opondo-se a Gabriela Canavilhas, discorda que o processo político esteja encerrado, não aceitando que o IILP seja o único santuário da língua. É uma posição de lamentar, embora mais matizada. A redenção está a um curto passo.
Michael Seufert (CDS) e Miguel Tiago (PCP) mostraram ter lido e ouvido e ter o pensamento de ambos sido transformados pelo que leram e ouviram. Merecem o nosso aplauso. Caros concidadãos, há deputados que honram o seu mister, que lêem, ouvem, estudam e pensam com a devida honestidade intelectual. Que actuam como representantes dos eleitores e a estes ouvindo e prestando contas, mais do que a interesses partidários ou extrínsecos ao seu mister.
E porque a esperança no movimento desacordista em Portugal existe que me dirijo aos demais deputados, os que não têm acompanhado esta matéria. Hão-de todos pronunciar-se no debate do dia 20. Não façais, por má-fé, o que fizestes em 2008 por desconhecimento, ao ignorardes olimpicamente uma petição de 110.000 pessoas e todos os pareceres de especialistas, à excepção de um, do prof. Malaca Casteleiro, parte interessada na matéria. Informai-vos junto dos colegas que a têm acompanhado. Dai-vos à pena de ouvir as gravações (sobretudo a da audiência aos professores brasileiros) e lede os documentos. Testemunhai os efeitos perversos da abertura dessa caixa de Pandora que que foi a ratificação do 2.º Protocolo Modificativo do AO90 e da RCM 8/2011. Verificai que, batendo leve levemente, entraram nas nossas vidas os contatos e os fatos, além dos patos (por pactos), impatos (por pactos), compatos (por compactos), adetos (por adeptos), recessões (de receções, por recepções), etc.. Até no Diário da República, na escrita de professores que exigem correção aos alunos não sendo eles próprios corretos nem correctos. Conferi que entre os efeitos perversos se contam a influência no domínio de outras línguas, em formas como diretion, excetion, ation (em lugar das palavras inglesas direction, exception, action). Tudo isto está amplamente documentado e tem livre curso. Confrontai os vários dicionários, vocabulários, correctores e conversores ortográficos; estes, embora alegadamente obedientes ao AO90, não raro discrepam entre si e o violam, deixando o mais sincero e dogmático adepto do dito no incerto fado de não saber escrever em “acordês” sem o violar. Percebei de vez que, com o recuo pré-anunciado do Brasil, com a rejeição de Angola e Moçambique e a indiferença entre os demais países, Portugal está “orgulhosamente só” com o seu “acordês”.
Lede, ouvi e entendei. Tomai a decisão óbvia: a desvinculação de Portugal do penoso 2.º Protocolo Modificativo ao AO90 ou, no mínimo, a suspensão imediata do mesmo. Não vos deis às penas de fugir aos vossos deveres virando as costas à maioria dos cidadãos, que estes deixaram se de dar à pena da indulgência. Basta com a ignomínia de não-leituras, leituras parciais e tresleituras! É A HORA.
Investigador do Centro de Estudos Clássicos da Universidade de Lisboa, poeta