Uma portugalidade tropical na arquitectura do Estado Novo
Os arquitectos portugueses começam a desenvolver na década de 30 uma arquitectura para África que se inspira na tradição do Sul de Portugal. Aprofundam uma arquitectura racional de resposta ao clima. Os edifícios são hoje um património singular face a outros passados coloniais.
O projecto moderno inicia aqui a sua inclinação para as expressões locais que permitirão abordagens fortemente conotadas com as regiões tropicais e que culminam na exploração do brise-soleil e suas variantes. Nessa procura de uma localidade universal, o clima é um dos elementos determinantes de um desenho positivista e funcional. Mais tarde este processo será objecto de tratamento por parte dos seus discípulos em publicações que surgem a partir dos anos de 1950 sobre as regiões quentes e húmidas.
Nestas favorece-se a consolidação de uma "linguagem moderna" internacional, todavia reveladora "das condições do clima, dos hábitos do povo e das aspirações dos países quer estes estejam sob o céu azul dos trópicos secos ou do céu nebuloso do mundo equatorial" (Fry, Drew, 1982). Alguns desses peritos, como Maxwell Fry e Jane Drew, autores de Tropical Architecture in the dry and humid zones, acabam mesmo por formar uma geração de arquitectos portugueses que constitui o último contingente profissional do Gabinete de Urbanização do Ultramar que, em Lisboa, aprofunda um método de projecto dirigido especificamente para os trópicos. Esta formação passa por frequentar, durante a segunda metade da década de 1950, o curso de Arquitectura Tropical ministrado na Architectural Association, em Londres. Antes disso, contudo, os portugueses vão acumulando diversas experiências em África e o seu caminho até chegarem à arquitectura moderna não se faz linearmente.
Traçado colonial
Na mesma época em que Le Corbusier descobre o Norte do continente africano, cujo conhecimento aprofunda em sucessivas viagens à bacia do Mediterrâneo, os portugueses trabalham já para os territórios tropicais nos mais variados programas e combinações climatéricas.
Antes do começo da Segunda Guerra Mundial, prolongam velhas experiências, disseminadas pelos territórios subsarianos, construindo edifícios de "traçado colonial" com galerias exteriores e coberturas muito pronunciadas que permitem proteger as paredes da exposição solar e, simultaneamente, evitar os efeitos da forte pluviosidade.
Gradualmente, a par dos problemas que envolvem a construção (paleta de materiais disponíveis e qualidade da mão-de-obra), percebem as potencialidades do clima na definição de uma arquitectura que, apesar de ajustada ao meio e racional na sua organização, possa garantir uma clara associação com a cultura colonizadora. Durante a guerra, a novidade que os edifícios públicos mais recentes trazem é precisamente a combinação entre uma resposta ao clima e uma figuração que evoca a Metrópole. Mas mais do que isso, os portugueses estão empenhados em provar que a tradição nacional – mais especificamente, a tradição do Sul de Portugal – pode originar uma arquitectura tropical.
A partir da segunda metade dos anos de 1930, dispõem-se a demonstrá-lo.
A opção por uma via nacional inicia-se ainda no final dos anos de 1920, em projectos de feição "tradicionalista" do arquitecto Vasco Regaleira, de que é exemplo a ermida do Lobito (ou a capela de Nossa Senhora da Arrábida ), comentada na revista Arquitectura pelas suas "linhas sóbrias e simples" e cujo alpendre é apontado como elemento arquitectónico adequado ao "calor, que é enorme naquelas inóspitas paragens" (Arquitectura, 1927).
O caso de Regaleira é exemplar, prosseguindo em abordagens cada vez mais historicistas como prova o projecto de alterações do Colégio de S. José de Cluny (desenho original de Franz Schacherl, Luanda, 1943), insistindo-se no "intento de aportuguesar a nossa arquitectura dando-lhe uma feição colonial" (Regaleira in Fonte, 2007), ou as duas propostas para a catedral de Nova Lisboa (Huambo, 1943 e 1945), onde "se procurou diminuir a intensidade da luz do dia" dando "maior inclinação [aos] telhados para escoamento das águas das chuvas torrenciais, ventilação interior, etc." (Regaleira in Fonte, 2007).
O uso já extemporâneo desta linguagem culmina no Banco de Angola (Luanda, 1952), que lhe serve de prova "das condições excepcionais que oferece a nossa arquitectura tradicionalista na adaptação ao clima colonial" (Regaleira in Fonte, 2007).
Se os edifícios de Regaleira representam um historicismo literal que evolui sem grande criatividade, coabitam contudo com outras realizações, executadas dentro do mesmo plano linguístico, cujos desenvolvimentos se revelam mais produtivos. É o caso de duas novas escolas projectadas por José Costa Silva para as capitais das principais colónias – os liceus Salvador Correia (Escola Secundária Mutu Ya Kevela), em Luanda, e Salazar (Escola Secundária Josina Machel), em Lourenço Marques (actual Maputo).
Estas ensaiam inclusive propostas inovadoras face ao anterior quadro estilístico que coexiste com uma forte tendência art déco (aliás, o tema do primeiro projecto para Luanda que será rejeitado). Concretizam-se duas soluções funcional e esteticamente diferenciadas, mas igualmente influentes na produção seguinte.
O seu autor é, já na época, um dos mais relevantes arquitectos da Junta de Construções para o Ensino Técnico e Secundário (JCETS), organismo oficial responsável pelo desenvolvimento do Plano de 1938, que propõe apetrechar a Metrópole com treze novos liceus, servindo uma população estudantil de cerca de sete mil alunos. Embora o plano não se estenda às regiões coloniais, é durante a sua aplicação que são construídos estes dois equipamentos. A sua importância urbana é comprovada pela escala que ainda hoje detêm nestas cidades africanas, cabendo-lhes então o papel de "difusor constante da cultura portuguesa" (JCETS, 1936]).
No caso do liceu angolano, cujo projecto arranca em 1936, é no domínio do "problema arquitectónico", exposto no documento escrito que acompanha as peças desenhadas, que se discute a elaboração de um projecto "‘a ratione’ baseado, por um lado, nas condições especiais do programa e, por outro lado, no conhecimento do clima de Luanda" (JCETS, 1936).
Comprova-se igualmente o pioneirismo deste liceu na fixação de um ideário nacionalista, antecipando a produção metropolitana neste domínio programático, exemplificada pelas realizações do Plano de 1938.
Dada a inexperiência dos arquitectos da junta em trabalhar para as colónias, são debatidas duas abordagens. A primeira relaciona-se com a tradição da varanda que circunda o edifício. A proposta é recusada por se considerar que exige coberturas de grandes dimensões. A segunda passa pela distribuição das várias funções "em pavilhões, ligados entre si por galerias de comunicação", possibilidade também rejeitada por aumentar o custo e promover a dispersão programática, "dificultando a manutenção da disciplina" (JCETS, 1936).
A solução inscreve-se numa terceira hipótese, recorrendo-se ao modelo conventual testado na tradição portuguesa. O "claustro", para lá da óbvia função distributiva, tem ainda a utilidade de servir como recreio coberto, elemento indispensável nos trópicos.
Não existindo protecção sobre as paredes, concentra-se no vão da janela todo o investimento de adaptação climatérica. A arquitectura alentejana fornece o arquétipo, "pela utilização, nos dois terços superiores da janela, de adufas em cerâmica, ou moldadas em cimento" (JCETS, 1936). É nesta configuração que está o carácter inovador da proposta, garantindo-se ventilação e ensombramento interior.
Costa Silva parece admitir que não pretende "apresentar uma solução definitiva", confiando nas modificações sugeridas pelos "técnicos locais", como se esclarece na memória descritiva. Realça-se, contudo, que a "construção nos climas quentes e húmidos é uma questão delicada, que tem que ser resolvida com o auxílio da longa experiência que, nos países de civilização antiga, é representada pela tradição" (JCETS, 1936). Cumprindo as expectativas acalentadas pelos arquitectos que investigam as melhores soluções a aplicar nos territórios coloniais, a tradição portuguesa parece assim capaz de fornecer uma matriz para o desenvolvimento da arquitectura tropical. Este aspecto é confirmado na avaliação favorável da comissão local que analisa o projecto, aprovando-o "embora não sejam previstas varandas, como é vulgar nos climas tropicais" (Vasconcelos, Aguiar, Castro, 1936).
A redacção desse parecer prova simultaneamente a inovação do desenho no contexto colonial e sintetiza os princípios que devem futuramente nortear a construção de equipamentos nos trópicos. A memória descritiva já antecipava uma alteração formal que reflectia uma posição ideológica, partilhada aliás com equipamentos análogos construídos na Metrópole. É neste contexto que uma opção estilística não moderna é claramente assumida.
A conveniência da dar à construção um caracter que evocasse a Mãe-Pátria – evocação essa que constitue um dos elementos fundamentais do programa – levou a Junta a pôr deliberadamente de parte as normas arquitecturais modernas (JCETS, 1936).
Inventar o edifício público colonial
Na sua segunda obra tropical iniciada em 1939 – o Liceu Salazar –, reconhece-se todavia um traço de maior modernidade, confirmando a destreza dos arquitectos deste período em transitarem pelos diferentes padrões figurativos.
O primeiro sinal de actualização é o destaque que Costa Silva e Pedrosa Valente dão à técnica construtiva, exigindo uma cobertura plana para evitar a "expressão de certo modo primitiva" que o telhado inclinado lhe daria (Costa, Valente, 1944). Mas é no capítulo "O Edifício do Liceu e a construção em climas quentes" que se avança com um meio de protecção das paredes contra o excesso de insolação, recuperando o velho sistema colonial da varanda coberta. Na escola moçambicana, "estas galerias permitem abrigar em sombra tanto as paredes como as superfícies envidraçadas que deste modo [podem] ter as dimensões necessárias a uma forte ventilação dos interiores" (Costa, Valente, 1944). Resolvida a protecção solar das fachadas, avança-se para a questão da localização que deve satisfazer a "estética urbanística da cidade". Conclui-se que a implantação do novo liceu "não [deve ser] condicionada […] pela exposição solar mas sim pelo regime dos ventos locais" (Costa, Valente, 1944).
As melhores condições de temperatura nas dependências obtêm-se não pela orientação […] a sul – com a desvantagem do lado oposto ficar a norte, a exposição mais quente – mas sim pela exposição aos ventos frescos predominantes. Os corpos de construção devem ser completamente atravessados por estes ventos, sendo por esta razão que não convém nem galerias envidraçadas nem quaisquer tabiques interiores que os obstruam totalmente, originando zonas estagnadas de ar cujos efeitos se reflectem desfavoravelmente na temperatura dos ambientes (Costa, Valente, 1944).
O desenho apoia-se em argumentos técnicos que definem opções como a "largura dos corpos", a sua relação com os pés-direitos (Costa, Valente, 1944), as soluções construtivas, etc. Ainda que constituído por volumes independentes, condição mais favorável ao bom arejamento, prevalece "o efeito de um bloco de construção único" (Costa, Valente, 1944) decorrente da ligação em galeria.
A galeria exterior coberta torna-se assim um elemento arquitectónico corrente na arquitectura colonial que os portugueses aperfeiçoam durante os anos de 1940, vulgarizando-se principalmente em obras de forte carga funcional, como os equipamentos escolares e hospitalares realizados nas duas décadas seguintes. O modelo de edifício público que o Estado Novo generaliza nos territórios ultramarinos resulta então de uma combinação deliberada destas duas obras escolares, reflectindo-se na preferência pelos volumes puros e compactos (com implantação livre de constrangimentos pré-existentes), no recurso à cobertura inclinada e na manutenção da galeria exterior.
Um modelo alternativo
Encontrada a "fórmula funcional", é o momento ideal de se transferir para o poder político a vontade de fixar uma expressão figurativa adequada aos trópicos. Em 1948, Marcelo Caetano manifesta-se em defesa do recém-criado Gabinete de Urbanização Colonial, condenando o facto de a maioria das obras públicas coloniais contemporâneas demonstrarem "uma desnorteante variedade de gostos e de estilos […] desde o românico arcaizante […] até à ‘caixa de amêndoas’, passando pelo inevitável ‘português suave’".
Segundo o antigo ministro das Colónias, a "arquitectura colonial exige o estudo das condições particulares de construção nas regiões tropicais" (Caetano, 1948), justificando-se assim a criação de "um laboratório" onde é possível gerar "uma doutrina e um estilo para a arquitectura colonial portuguesa" (Caetano, 1948).
A primeira geração ao serviço do gabinete, em que se insere João Simões, procura satisfazer este desejo, a partir do desenvolvimento de uma arquitectura racional fiel à tradição nacional.
A enfermaria mista de Bafatá (Guiné, 1946), da sua autoria, ou o Museu de Bissau, concluído cerca de 1948, fortalecem a inspiração numa arquitectura portuguesa do Sul com galerias alpendradas e adufas que facilitam a ventilação e protegem do calor, privilegiando a horizontalidade e dando protagonismo ao telhado na composição geral do edifício. Gera-se o ambiente para que uma arquitectura de referências nacionalistas se possa impor.
Não é a arquitectura moderna e heróica à Le Corbusier, mas uma "arquitectura de perfil técnico" – feita por funcionários públicos –, resposta dos arquitectos do Estado Novo às solicitações de um ideal estético obtido directamente a partir da compreensão dos elementos meteorológicos.
Genericamente, como escreve João Aguiar, em 1952, em L’Habitation dans les pays tropicaux, "um edifício de arquitectura confortável será […] construído com características especiais adaptadas ao clima, exigindo a adopção de elementos de protecção destinados a contrariar a influência dos agentes climáticos" (Aguiar, 1952). No mesmo livro ainda, Aguiar, profissional influente no gabinete, descreve dispositivos modernos de protecção das fachadas, caso do brise-soleil, como alternativa às tradicionais "arcadas de colunas" e demonstra estar familiarizado com os mecanismos de refrigeração natural e artificial. Mas este conhecimento não o leva a desistir de uma "via nacionalista".
Como então se prova, os portugueses dominam razoavelmente os princípios da arquitectura tropical, o que lhes permite continuar a aprofundar as suas próprias opções estilísticas. Eventualmente, a expressão moderna triunfará em produção e qualidade nos territórios ultramarinos, prolongando-se para lá da atenção que a Metrópole lhe dispensa.
Mas no acerto, que se vai ensaiando nestes tempos, existe a busca de uma "portugalidade tropical" que não compromete os requisitos técnicos. Mesmo incómodo, trata-se de um projecto racional que evolui autonomamente em relação à tutela corbusiana, aquela a que comummente se atribui a exclusividade da invenção de uma arquitectura tropical assente em princípios funcionais. Último capítulo do livro "Nos Trópicos Sem Le Corbusier", que dá o título à obra, com que a autora venceu do prémio de crítica e ensaística de arte e arquitectura AICA/Fundação Carmona e Costa