“Quem vai esquecer? Só quem, um dia, não tiver nenhuma memória do apartheid"

“A reconciliação é uma viagem” que, na África do Sul, ainda não chegou ao fim. Ainda há feridas abertas, a muitas histórias por contar. Como Mandela, muitos sul-africanos conseguiram perdoar, mas nunca vão esquecer.

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Uma mulher na aldeia de Qunu, onde vai ser sepultado Nelson Mandela Yannis Behrakis/Reuters

A sua resposta é a mesma de muitos sul-africanos, quando se fala em reconciliação. “Não há reconciliação. Todos nós queremos reconciliar-nos com os brancos. Por isso, perdoámos. Mas alguns brancos ainda nos dizem: ‘Não pensem, só pelo que diz Mandela, que vocês são alguém”, conta. “Quem vai esquecer? Só quem, um dia, não tiver nenhuma memória do que foi o apartheid. Só a próxima geração”, completa Justice Buthelezi, 62 anos, produtor e realizador da televisão pública SABC.  

Sob um manto de más recordações, Miriam Nkabinde consegue reconhecer bondade naquele que foi, durante muito tempo, o seu patrão africânder. “Era um bom homem.” Como era o agente da polícia que, depois de deter um grupo de jovens onde estava Justice Buthelezi, por não terem o passe obrigatório de identificação, logo a seguir os libertou: “Regras são regras e deviam ficar presos. Mas vão. Saiam depressa.”

A voz sábia e apaziguadora de Mandela calou-se para sempre. Mas a sua imagem não. Cartazes com a sua fotografia, com mensagens de despedida e agradecimento, estão espalhados por Joanesburgo. As rádios e as televisões continuam a transmitir as homenagens pelo país e todo o tipo de documentários sobre a vida do herói da libertação. Todos os dias, os sul-africanos aprendem mais um pouco sobre Mandela, o homem que um dia os aconselhou a “perdoar mas não esquecer”.

É importante o perdão, mas o perdão com reparação, dizia o ex-Presidente, arquitecto de uma transição sem guerra. Era vital, para ele, que o perdão e uma vida mais digna fossem dois lados de uma mesma moeda. As pessoas acreditaram que o seu perdão contribuiria para uma reconciliação que lhes daria uma vida melhor. E isso está a falhar.

“A maioria da população vive na pobreza”, diz Alphonse Niyodusenga, um ruandês que assistiu ao genocídio no seu país em 1994, e veio para a África do Sul ajudar na reconciliação no pós-apartheid.

É director adjunto do Instituto para Sarar as Memórias (Institute for the Healing of Memories), fundado pelo padre anglicano Michael Lapsey.

Sentimento de vingança
Michael Lapsey nasceu na Nova Zelândia, mas instalou-se na África do Sul, onde se juntou à luta anti-apartheid. Em 1976, tornou-se líder religioso do Congresso Nacional Africano (ANC). Em Abril de 1990, pouco depois de Mandela ter sido libertado, o padre neozelandês sobreviveu a uma bomba que lhe explodiu na cara. Estava em casa e pegava num maço de revistas – onde estava escondida a bomba – para escolher uma para ler.

Nunca mais foi o mesmo; nem fisicamente – ficou sem um olho e sem uma mão –, nem espiritualmente. A sua vitória foi conseguir ultrapassar o primeiro sentimento de profunda raiva e desejo de vingança. Saiu da África do Sul para recuperar. No regresso, encontrou um país de sobreviventes, como ele. Criou o instituto em 1998 – ano em que a Comissão para a Verdade e Reconciliação (CVR), presidida pelo arcebispo anglicano Desmond Tutu, terminava as suas audiências. O objectivo era prolongar esse espaço de partilha de experiências do tempo do apartheid para lá do tempo da comissão, diz Alphonse Niyodusenga.

“A Comissão para a Verdade e Reconciliação foi muito boa na forma como juntou as pessoas para partilharem a sua dor e os seus tormentos”, considera. “A nossa preocupação, quando terminou, foi vermos que havia milhares de pessoas que não tinham tido oportunidade de expor as suas feridas.” Também há quem, como Monica Bandeira, investigadora do Centro de Estudos sobre Violência e Reconciliação, considere o trabalho da comissão inútil. Ou só em parte útil, como Nomfundo Mogapi, directora do Programa sobre Trauma e Transição no mesmo centro de estudos.

“A CVR teve o mérito de mostrar uma realidade desconhecida do mundo e de muitos sul-africanos. As pessoas não tinham ideia das coisas terríveis que se passavam nos townships (bairros de negros), das histórias de jovens que eram mortos ou torturados só porque eram activistas”, diz esta psicóloga.

Mas, ao focar apenas as violações graves, limitou a brutalidade do apartheid à actuação da polícia ou dos carrascos – pessoas que foram condenadas ou amnistiadas por confessarem os crimes. “E não lidou o suficiente com o sofrimento do dia-a-dia, com a psicologia do apartheid que ainda hoje está por resolver.”

Também por isso o Instituto para Sarar as Memórias continua a promover encontros nas comunidades e a acreditar na reconciliação desde que uns e outros compareceram, incluindo os brancos, o que não tem acontecido. “O perdão tem de ser partilhado”, diz Alphonse Niyodusenga. Assim como a reconciliação, ainda incompleta. “A reconciliação é uma viagem, faz parte de um processo. Não é algo que aconteça subitamente”, diz.

E salienta: “Não devemos esquecer os brancos que lutaram contra o apartheid e foram vítimas do regime. Também houve, entre os brancos, óptimas pessoas que sofreram os traumas do apartheid.”

Cerimónia abençoada
A chuva, que cobriu a cerimónia em memória de Mandela, no estádio junto ao Soweto, durante todo o dia de terça-feira, foi “o sinal da sua bênção". "[Foi] uma maneira de ele comunicar connosco. Para nós, foi a maneira de ele nos dizer adeus”, diz Nomfundo Mogapi. A prova? O sol que encheu o azul do céu no amanhecer seguinte, diz, sorrindo, antes de acrescentar. “Mandela sabia muito bem escutar os outros. E era muito bom nisso de tolerar o intolerável. Mas é preciso deixar as pessoas falarem do que lhes aconteceu.”

"O que Mandela fez muito bem foi criar uma transição suave, sem guerra. Esta ideia da nação arco-íris foi uma imensa proeza e uma grande conquista. Mas talvez essa ideia tenha ignorado muitas das feridas individuais”, acrescenta Monica Bandeira. “Toda a gente tem uma história para contar.”

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