“Um líder errado que queira mobilizar as pessoas pela questão da raça consegue fazê-lo. Será muito fácil”

A África do Sul ainda não é a nação livre de preconceitos que Nelson Mandela imaginou. O seu desaparecimento suscitou receios de novas tensões raciais, mas também lembrou o modelo de país que a grande maioria dos sul-africanos quer ter.

Fotogaleria
O adeus a Mandela continua em Pretória FILIPPO MONTEFORTE/AFP
Fotogaleria
FILIPPO MONTEFORTE/AFP
Fotogaleria
FILIPPO MONTEFORTE/AFP
Fotogaleria
FILIPPO MONTEFORTE/AFP
Fotogaleria
FILIPPO MONTEFORTE/AFP

“O desaparecimento de Mandela lembrou-nos o país que realmente queremos ter”, diz a psicóloga Nomfundo Mogapi, uma das responsáveis do Centro para os Estudos da Violência e da Reconciliação, em Joanesburgo. “Devemos tentar tudo para manter a democracia e os valores, e este país, [este modelo da nova África do Sul de Mandela].”

Não será ainda a nação – livre de preconceitos – que o ex-Presidente sonhou. A exclusão social aumenta e o fosso entre os muitos ricos e os muito pobres acentua-se. E a questão da raça continua “muito presente”, diz Nomfundo Mogapi. “Um líder errado que queira mobilizar as pessoas em torno do tema da raça consegue fazê-lo. Será muito fácil.”

Diz isso porque no dia-a-dia surgem, por vezes, mal-entendidos sem importância que ganham dimensão pela carga ainda presente das discriminações do passado, das diferenças impostas. Os africanos tinham de esperar nas filas, enquanto os africânderes eram atendidos com reverência. Essa memória está presente, como mostra um episódio recente a que Nomfundo Mogapi assistiu quando, num banco, uma jovem branca se preparava para passar a fila e uma senhora negra se insurgiu e disse que a submissão imposta dos tempos do apartheid tinha acabado. “Ela acabou de falar e toda a gente aplaudiu”, conta.

Nomfundo Mogapi entendeu. “Eu sou do tempo em que todos os negros, mesmo perante uma criança branca, eram obrigados a tratá-la por 'bass' [de 'boss”, chefe] ou 'madam' [senhora]. Custava-me essa humilhação, quando envolvia os meus pais.” (O pai era gerente de uma mina e a mãe professora.) “Eu sou do tempo em que um adulto perguntava a uma criança o que ela queria ser e ela respondia: ‘Quando for grande, quero ser branco.’ Cresci com a noção sempre presente de que o negro não tinha valor.” Esta psicóloga acredita que o preconceito racial está enraizado. E o risco é que ele passe para as novas gerações.

A convivência é uma conquista visível nas ruas e nos restaurantes, em esplanadas e autocarros de Joanesburgo. Mas é também nos lugares públicos – onde geograficamente se encaixa a dolorosa memória de décadas de segregação racial – que por vezes toma forma sob uma expressão mal resolvida de sentimentos contraditórios relativamente ao passado. “Estes episódios [de crispação] acontecem sobretudo nos espaços públicos, por ser aí que o apartheid era exercido”, diz Nomfundo Mogapi.

Também há pessoas que pensam que a atitude que tomam em relação aos brancos pode, por vezes, facilitar ou não o contacto. E alguns, mais velhos, que dizem ter interiorizado de tal forma a rigidez das regras de antigamente, que não contestam outras regras (muito diferentes) de hoje, mesmo não concordando com elas.

A questão do respeito
O preconceito racial está lá, mesmo quando não existe racismo, diz Monica Bandeira, uma sul-africana de origem portuguesa, também psicóloga e investigadora no mesmo centro de estudos. “Está lá, porque as pessoas viveram o apartheid. Durante muito tempo, houve desumanização. Pequenas coisas desse tempo continuam hoje. A questão do respeito é muito importante neste país.” É difícil ser parte desta realidade, qualquer que seja o lado em que se está, conclui.

Como Nomfundo Mogapi, Monica Bandeira cresceu no tempo do apartheid (tinha 12 anos quando Mandela foi libertado), mas viveu a realidade oposta – não fora, mas dentro do mundo aceite pelo poder branco. E conivente com ele?

Era muito nova, diz, e não se sente parte desse mundo. Os próprios pais, portugueses exilados de Moçambique depois de 1975, eram aceites por serem brancos mas discriminados nos seus salários por não falarem africaner. Fala de “um complexo de culpa dos brancos” que se reflecte num estado de “negação” que permanece hoje. “A tendência era para distorcer a realidade, evitá-la ou negá-la.”

Uma visão distorcida
O medo era instigado nos brancos contra os negros, sempre referidos como terroristas, por um governo que censurava e apenas mostrava parte da realidade. Também por isso, “há pensamentos muito negativos relativamente a pessoas não brancas”, frisa.

“As pessoas não tinham a verdadeira percepção dos acontecimentos. Não ouviam falar da violência contra os negros. E estes não eram vistos como combatentes pela liberdade, mas como criminosos perigosos”, diz Monica Bandeira.

Sem a abertura de Frederik De Klerk, o último Presidente do apartheid, Mandela não teria sido libertado para negociar o caminho para uma democracia, com o Partido Nacional, em nome do Congresso Nacional Africano (ANC), que também tinha nas suas fileiras muitos activistas brancos anti-apartheid. Mas Monica Bandeira realça a distância que a grande maioria dos cidadãos manteve e a apatia que revelava perante as práticas de um regime opressor. “A grande maioria da população beneficiava do sistema e mantinha distância. Muito poucos brancos tiveram a coragem [de se envolver na luta pela libertação]”, afirma.

A aceitação das regras prevalecia, diz Monica Bandeira. Podia, por exemplo, sentir mais admiração pelo director da sua escola, que desafiou as regras ao aceitar um aluno africano. Mas acredita que ele o fez (levando à exclusão da escola das competições desportivas nacionais) apenas porque a criança era filha adoptiva de um casal branco.

Desses tempos guarda a percepção de que a imensa maioria de brancos “fechava os olhos” às injustiças. “Como acontece agora”, diz, com as desigualdades que separam os pobres dos ricos, que são na maioria brancos. Muitos negros beneficiaram do novo sistema e enriqueceram, mas é entre eles que a exclusão aumenta, a dificuldade de acesso ao ensino e à saúde, a uma boa casa e a um emprego condigno.

“Continuamos a ter a divisão social pela raça, mas agora também por razões económicas”, explica. “Do ponto de vista racial, Joanesburgo é, de longe, a cidade mais integrada. Na Cidade do Cabo, as divisões continuam.”

Saudosismo africânder
Como, em diferente grau, em Pretória. A poucos quilómetros, uma comunidade rural de saudosistas do apartheid está decidida a manter as regras do antigo regime. Kleinfontein aspira a ser exclusivamente africânder e a ser reconhecido como tal.

À entrada do enclave foi erguido um busto de Hendrik Verwoerd, ex-primeiro ministro e um dos fundadores do apartheid, conta a imprensa britânica. As poucas centenas de habitantes não admitem a entrada de não africânderes, porque dizem ser esta a melhor forma de preservar a sua cultura e língua africaner do povo descendente de holandeses.  

Kleinfontein não é representativo, mas, segundo o jornal Guardian, outras comunidades aspiram ao mesmo, o que ilustra o receio das divisões raciais que ainda possam existir ou ressurgir depois da morte de Mandela.

O ex-Presidente sul-africano Thabo Mbeki garantiu, numa cerimónia na Igreja Metodista esta semana, que tal não vai acontecer, como alguns mais pessimistas prevêem. Mandela desapareceu, mas não a sua visão de reconciliação partilhada por toda uma geração de combatentes, disse Mbeki.  

“Mandela via a pessoa, não a raça”
Nomfundo Mogapi lembra-se do dia em que os negros puderam votar pela primeira vez, a 27 de Abril de 1994, como um dia mágico, algo “irreal, como um sonho que nunca iria realizar-se”. Em criança, quando a família assistia às eleições na televisão, Nomfundo Mogapi não entendia por que os pais não votavam, nem os pais dos seus amigos. “Idealizámos Mandela, mas também idealizámos esta democracia”, que levou tempo a conquistar. 

“O regime só não acabou mais cedo, porque estávamos à espera de ver Mandela sair da prisão”, diz Virginia Griffiths, residente num dos mais sofisticados bairros de Joanesburgo, Rosebank. Congratula-se com o fim do apartheid que a acompanhou na maior parte dos seus 83 anos de vida. “Era muito injusto ver os negros a serem postos em segundo plano. Quando eu entrava numa loja, era imediatamente atendida, mesmo se outra pessoa estivesse à espera.” Não participou nas celebrações em memória de Nelson Mandela, mas recorda o líder da luta anti-apartheid como “um homem maravilhoso”. “Ele reconhecia as pessoas pelo que elas eram, e não por serem negras, brancas ou de outra raça.” 
 
 
 
 

Sugerir correcção
Comentar