Da nostalgia o etíope Hailu Mergia criou um sonho de futuro
O músico que viu reeditado em Junho o seu clássico Shemonmuanay actua quinta-feira no Musicbox, em Lisboa
Pouco depois, estava no estúdio de outro amigo a gravar todas as velhas canções de que se lembrava, sem outro objectivo que a preservação daquele património. “Tinha muitas memórias daquelas melodias, dos tempos em que tocava nos clubes [de Addis Abeba], e não queria que se perdessem. Só queria isso, preservar a memória”. Mas algo aconteceu naquele ano de 1985 em que Mergia redescobriu o acordeão. 28 anos depois, vamos poder descobrir exactamente o quê.
Esta quinta-feira, Hailu Mergia é o convidado da primeira noite das celebrações do sétimo aniversário do Musicbox, no Cais do Sodré, em Lisboa (concerto às 23h, entrada livre até às 2h). A festa continuará sexta-feira com a actuação de Destroyer, que apresentará a solo o seu último EP, Five Spanish Songs – como o título indica, é cantado em castelhano (concerto às 24h, bilhetes a 12€). Sábado, para final de festa, sobem a palco duas das mais promissoras bandas do actual panorama português, os Ermo e os Sensible Soccers, que ali apresentarão os seus álbuns de estreia (os Ermo são os primeiros a actuar, às 24h, os Sensible Soccers chegam à 1h e os bilhetes custam 8€). Mas voltemos a Hailu Mergia.
Entrou no estúdio, dizíamos, para gravar as canções tradicionais da sua juventude. “Mas havia lá um órgão Rhodes. E uma caixa de ritmos e um sintetizador Moog. Quando ouvi a combinação de todos aqueles instrumentos, adorei o som”, conta. Hailu Mergia, músico curioso, músico explorador, decidiu rodear o acordeão ancião da moderna caixa-de-ritmos, do futurista Moog e dos sons quentes, a meio caminho entre a soul e o jazz, do órgão Rhodes. O resultado é música gloriosamente indefinida. Passado e presente unidos, nostalgia sonhadora fermentando um futuro por inventar: o balanço majestoso do acordeão em bailado imponente entre a marcação cerrada da caixa de ritmos e a luminosidade jazz do Rhodes. Em resumo, a música etíope, ela mesma nascida de uma confluência de povos e tradições, reinventada de uma forma pessoalíssima, inimitável, fascinante. “Não estava à procura de um som algo louco e não o fiz para se tornar popular. Fi-lo simplesmente. E é o meu álbum preferido”.
Em 1985, Hailu Mergia gravou e editou Shemonmuanay. Na Etiópia, as cassetes com o álbum foram um sucesso instantâneo - Hailu Mergia não era simplesmente um músico de bar etíope, era o antigo líder da Walias Band, grupo destacado da revolução musical etíope das décadas de 1960 e 1970 que tem em Mulatu Astatke a sua figura mais reconhecida no Ocidente. “[As canções do álbum] são melodias clássicas da Etiópia. Trazem-me memórias de quando tocava nos clubes, memórias da minha infância e do meu crescimento. Acontece o mesmo com muitas das pessoas da Etiópia que as ouvem. São canções memoráveis para todos”. Para nós, que não somos etíopes, carregam o fascínio da descoberta de um novo mundo, como se tem comprovado desde Junho deste ano, mês em que a Awesome Tapes Of Africa, editora especializada em recuperar tesouros da música africana, lançou internacionalmente Shemonmuanay. E eis Hailu Mergia, há duas décadas motorista de táxi no aeroporto de Washington, de volta aos palcos.
Enquanto nos fala desde Berlim, este homem de 67 anos impressiona-nos com o seu percurso, ainda que a modéstia no discurso seja uma constante (menos quando fala da sua Walias Band). Estamos então nos anos 1960, na Etiópia de Hailé Selassié. Mergia começou a estudar música aos 14 anos. Primeiro o acordeão, que se tornou o seu ganha-pão quando abandonou o exército e começou a tocar em bares de Addis Abeba. Mudou depois para o órgão, sinal de modernidade num país que queria “um sopro novo de vida” em todas as áreas, e percorreu o território a tocar as suas melodias tradicionais adaptadas ao novo instrumento, algo inédito à época.
Walias Band, uma instituição
Enquanto isso, foram chegando à Etiópia sons de outras paragens (Mergia destaca o “americano James Brown”) e os jovens músicos locais procuraram mais longe. “Englobámos as novas sonoridades que nos chegavam para transformar os estilos e o sistema musical do país”. Com a Walias Band, que podemos ouvir na série Éthiopiques que, desde 1998, vem compilando a riqueza musical etíope da época, tornou-se músico respeitadíssimo. A banda, mestra de um funk polifónico, chamemos-lhes assim, actuava país fora e tinha também residência no Hotel Hilton, onde se apresentava perante altos dignatários nacionais e internacionais. Após a chegada ao poder do regime comunista do Derg, em 1974, foi a primeira banda não-alinhada a ser convidada a actuar no Palácio Presidencial. “A Walias Band é uma instituição, uma família e uma das maiores bandas do país”, elogia.
Em 1981, partiram para uma digressão nos Estados Unidos. Por ali ficariam dois anos. Digressão terminada, a banda dividiu-se. Metade quis regressar. A outra metade decidiu ficar. Hailu foi um deles. “A situação na Etiópia não era boa e eu queria experimentar viver algum tempo nos Estados Unidos”. A sua ideia era voltar a casa algum tempo depois. Regressaria apenas para duas visitas, em 1991 e 2010. Entre uma e outra, deixou os Zula Band, a banda formada pelos membros da Walias Band que ficaram nos Estados Unidos, e começou a conduzir o seu táxi.
Não passa pelos seus planos deixar o trabalho das últimas duas décadas. “Assegura-me um bom rendimento e não quero deixá-lo”. A música, porém, volta a fazer definitivamente parte do cenário. “Nunca deixei de tocar, mas fazia-o só para mim. A música na minha vida sempre correspondeu a tempos felizes mas, agora, quero fazer mais”.
Está a recomeçar por Shemonmuanay. Foi editado em 1985 mas ainda não chegámos ao seu tempo.