Talvez se deva começar pelo que há de paradoxal em A Vida de Adèle: capítulos 1 e 2, filme sobre a educação sentimental de uma jovem suburbana (Adèle) a partir do momento em que se cruza com Emma (Léa Seydoux). E é isto: o que tem sido posto em marcha pelo cinema de Kechiche, a expressão sensual de um tecido social e afectivo, parece imobilizar-se aqui, ou congelar-se.
Isto apesar de os “capítulos 1 e 2” do título, ao piscarem o olho à incompletude de La Vie de Marianne, de Marivaux, piscarem o olho ao movimento. Se tivermos em conta a boutade (talvez nem tenha sido isso) do crítico francês Serge Kaganski, no pós-Cannes, dizendo sobre Kechiche: “le plus grand cinéaste français actuel est d''origine tunisienne, qu''on se le dise et redise”, talvez se possa acrescentar, como uma extrapolação, que se detecta aqui um movimento, consciente ou inconsciente, em direcção a algo de mais reconhecível e figé - o filme de iniciação tal como cultivado pelos framceses (Pialat, Doillon, Téchiné, Eustache...). Kaganski, aliás, continuava, falando numa “obra-prima tão francesa dedicada aos sentidos e à liberdade dos indivíduos, banhada pelas grandes referências culturais nacionais (Marivaux, Picasso, Sartre, vinho branco...).” Que nos seja permitido continuar a extrapolação: é este o dilema, entre movimento e fixação, de A Vida de Adèle: a monumentalidade coral de O Segredo de um Cuscuz (2007), por exemplo, a forma como nesse filme o corpo de Hafsia Herzi era submetido a um mecanismo que o ultrapassava (algo de sacrificial que noutro filme do realizador, Vénus Negra, tomava a forma de ensaio paroxístico), está ausente ou domada. Restam vinhetas de exclusão social e de luta de classes. Tudo o que tem a ver com os pais das protagonistas ou com o grupo que rodeia Adèle é substancialmente episódico ou entra em perda quando Adèle e Emma, o par amoroso, o desafio deste filme, não estão no ecrã - quando o espectador não é o intruso na ménage a trois elaborada pelo cineasta e pelas intérpretes, Léa Seydoux e Adèle Exarchopoulos, o filme entra em ressaca. Eis então o que aqui está, nesta primeira adaptação de Kechiche, a partir da novela gráfica de Julie Maroh, Le bleu est une couleur chaude: a experiência de um Grande Íntimo.
Como uma lupa sobre a intimidade, sobre o sexo, com lágrimas e outros fluidos, encerrando o espectador numa bolha contraditória de assombro, de medo, que o faz estremer como numa primeira vez - por isso Julie Maroh veio dizer, mais do que sugerir, que o facto de ter sido um heterossexual a filmar uma história de amor lésbica deixou marcas que a incomodaram; por isso alguma crítica (americana, por exemplo) se armou com o feminismo para denunciar o suposto sexismo; por isso as intérpretes se assustaram com o que Kechiche as levou a fazer (disso resultando, no embate pós-filme que aconteceu entre Léa Seydoux/Kechiche, um episódio de utopia e decepção, social e afectiva, que podia rimar com os melhores momentos do cinema do realizador.)