O Papa na Aula Magna
Convinha que estes novos franciscanos ateus não cortassem a mensagem do Papa às postas para ficarem só com a parte que lhes interessa.
O Papa Francisco lançou uma exortação apostólica, que em larga medida é um programa do seu papado (com um nível de qualidade, detalhe e empenho muito superior ao guião de Paulo Portas – talvez ele possa começar a recorrer aos serviços do Vaticano), e perante certas passagens de A Alegria do Evangelho, onde o Papa critica a idolatria do dinheiro (“o dinheiro deve servir, e não governar!”) e o capitalismo selvagem, logo ele foi cooptado pela esquerda mais gongórica como um quase-discípulo de Mário Soares, como se a exortação de Francisco tivesse sido escrita para ser lida no encontro da Aula Magna.
Convém, portanto, em nome do rigor e da seriedade dos argumentos, avançar com uma breve citação: “Os trabalhadores isolados e sem defesa têm-se visto, com o decorrer do tempo, entregues à mercê de senhores desumanos e à cobiça de uma concorrência desenfreada. A usura voraz não tem deixado de ser praticada por homens ávidos e gananciosos, e de insaciável ambição. A tudo isto deve acrescentar-se que a contratação do trabalho e a condução dos negócios se concentram nas mãos de um pequeno número de ricos e de opulentos, que impõe assim um jugo quase servil à massa imensa do proletariado.” De onde é que este texto é retirado? De O Capital? Do Manifesto Comunista? Do 18 de Brumário de Luís Bonaparte? Nada disso. Da encíclica de Leão XIII Rerum Novarum, documento fundador da chamada doutrina social da Igreja, escrita em… 1891.
Só quem tem andado muito distraído nos últimos 122 anos é que pode agora descobrir, com o espanto com que Adão e Eva se aperceberam nus, que a Igreja defende a primazia do ser humano sobre o dinheiro, que se opõe às desigualdades e que coloca os mais pobres no centro das suas preocupações pastorais. Mas, como se costuma dizer, mais vale tarde do que nunca, e é bom ver tão vasto número de ovelhas dispostas a regressar ao redil de São Pedro, até porque a Igreja anda com falta de vocações. Por este andar, pode ser que ainda veja Francisco Louçã e Catarina Martins a entregarem sacos do Banco Alimentar à entrada do supermercado.
Ah, não, espera, isso já não pode ser – porque isso é caridade. E a caridade não serve os propósitos de certa esquerda, que a vê como uma forma de os ricos perpetuarem o jugo sobre os pobres, dando-lhes apenas o suficiente para eles não se revoltarem. Essa esquerda adora ouvir o Papa dizer que a “economia mata”, mas não suporta ouvir D. Manuel Clemente dizer que a “fé actua pela caridade”. Lá está: é o velho tique de amar muito a Humanidade como um todo, mas não ter grande interesse pelos homens em particular. A Igreja não funciona assim: cada pessoa é sagrada – individualmente sagrada, a cada hora do dia, e por isso não pode ser usada como um meio (o sofrimento como combustível da revolta) ainda que ao serviço de um fim muito bem-intencionado (um mundo onde todos sejam iguais)
Portanto, convinha que estes novos franciscanos ateus não cortassem a mensagem do Papa às postas para ficarem só com a parte que lhes interessa. Porque quando Francisco diz que o problema maior da sociedade actual é a exclusão, e que os excluídos já nem sequer são explorados, porque se limitam a ser “resíduos” e “sobras”, ele não está imediatamente a pôr-se do lado de manifestantes e grevistas. Está a pôr-se muito mais abaixo, ao lado daqueles que nem roubados podem ser, porque já não têm nada. Infelizmente, nem sequer um sindicato.
Jornalista. jmtavares@outlook.com