A Educação e as profecias autorrealizáveis

Por vezes até se diz “Não é que eu queira, mas…”. O que interessa é que cada um de nós fica predisposto e mesmo recetivo e ativo para aceitar como natural a realização da previsão que fez. Assim, mesmo que a previsão seja falsa (quase sempre é, porque é uma ”adivinhação”), a sua realização é incentivada de forma a que a realidade a venha a confirmar. Chama-se a este fenómeno as “profecias autorrealizáveis”.

Vivemos no mundo da Educação mergulhados em profecias deste tipo, isto é, opiniões que à força de serem propaladas acabam por ajudar a criar a base material para que as falsidades se tornem verdades. Não digam que esta perspetiva é maquiavélica e conspirativa. Quem tiver dúvidas que há profecias autorrealizáveis e que elas estão no meio de nós, que leia a espantosa entrevista que um senhor chamado Fernando Moreira de Sá deu a uma revista sobre a forma como ele e mais um grupo de “notáveis” combateu a favor da eleição de Pedro Passos Coelho. É um verdadeiro tratado profético…

Na Educação, estas profecias também campeiam e o seu objetivo é que se tornem, em breve, verdades. Vou dar três exemplos de profecias autorrealizáveis em que o atual Governo acalenta de forma direta ou indireta:

a) Os professores estão mal preparados
A seguir a um despedimento numeroso de professores, começa a ser alimentada a ideia de que os professores são descartáveis e profissionais “com dificuldades” para lidar com todas as questões da escola. Um exemplo é a introdução, neste momento, de um exame para o exercício da função docente. A mensagem que passa é que “é preciso pôr ordem” na incompetência através da seleção dos melhores professores. Portanto, a profecia é que há professores a mais, que os que existem podem ser substituídos e até com vantagem porque os que agora entram até fazem um exame de acesso.

Espera-se que os professores cumpram esta profecia: isto é, se sintam cada vez mais frágeis e por isso optem por atitudes, comportamentos e ações profissionais mais respeitadoras, mais convencionais. Tudo nesta profecia desaconselha que se corram riscos, que se seja criativo, que se faça algo para além daquilo que de mais tradicional imaginamos que a educação deve fazer.

b) Uma segunda profecia é sobre os alunos
A profecia é que os alunos são “completamente diferentes” de antes: são mais mal comportados, mais preguiçosos, menos preparados e menos motivados para a escola. Pessoas como eu, que são professores há várias décadas, não estranharão esta profecia: na verdade sempre ouvi os meus professores e os meus colegas professores dizer a mesma coisa: os alunos já não são como dantes… A profecia é que a escola não é capaz de lidar com todos os alunos. E a culpa disto é… dos alunos que são “completamente diferentes”. Coitadas das escolas incapazes de lidar com estes “índios” e a fazer o que é possível… Não nego – e conheço bem escolas muito problemáticas – que há comunidades em que os alunos são muito difíceis de ensinar.

Neste caso, os alunos também se sentem implicados nas tais profecias autorrealizáveis: “Dizem que eu não aprendo, então não vou mesmo aprender!” A questão é que não se pode colocar o ónus só nos alunos, mas pensar que estas escolas têm absoluta necessidade de mais meios, de mais consultoria, de mais apoio para poderem educar e ensinar alunos sobre os quais foi feita uma profecia de falhanço.

c) Uma terceira profecia é sobre a preparação das escolas para lidar com as dificuldades na aprendizagem
As escolas não têm possibilidade de lidar com alunos com dificuldades (eles atrasam os outros) e com deficiência (deviam ir para escolas “especiais”). Se não se colocarem nas escolas os meios que permitam responder e apoiar os alunos com dificuldades, vamos certamente cumprir esta profecia: escolas descapitalizadas de recursos, sem meios para apoiar atempada e eficazmente os alunos com dificuldades, cumprem a profecia de serem inadequadas como estruturas de inclusão.

Gostava de realçar que as profecias não são realidades e que muitas vezes são desejos que procuram tornar-se realidades. Na verdade, os professores não são descartáveis, não são incompetentes, os alunos mesmo em comunidades culturalmente muito descapitalizadas podem aprender e as escolas podem, através de políticas afirmativas de apoio, lidar com a diversidade dos alunos. Precisamos, pois, de contrapor outras profecias, de acreditar nos professores, nos alunos, na educação. Cada um de nós sabe o que significou na sua vida alguém que numa determinada altura, e mesmo com uma base muito pequena de evidência, acreditou em nós. Os nossos alunos todos beneficiariam muito disto que todos nós sabemos.

Professor universitário, presidente da Pró-Inclusão – Associação Nacional de Docentes de Educação Especial
 

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