O príncipe de Gales e outras excentricidades britânicas

Por este andar, ainda vamos descobrir que a democracia parlamentar é tão excêntrica como o príncipe de Gales

Apesar disso, o aniversário foi condignamente assinalado no Reino Unido. O Telegraph de Londres escreveu um editorial e destacou na primeira página uma entrevista com a mulher de Carlos, Camilla, duquesa da Cornualha. O título foi um pouco bombástico: "Hopeless, annoying, exhausting:  Camilla's verdict on Charles". Mas afinal a entrevista era bastante simpática para o aniversariante, destacando a sua dedicação ao trabalho e a inúmeras causas cívicas e sociais.

Entre essas causas, destaca-se a defesa do mundo rural. A Country Life, uma das mais pitorescas revistas rurais inglesas, convidou o Príncipe de Gales a dirigir a edição da semana passada. Num longo editorial de três páginas, Carlos classifica o mundo rural britânico como "a não reconhecida coluna vertebral da nossa identidade nacional – tão preciosa como qualquer uma das nossas grandes catedrais". Seguem-se inúmeras reportagens sobre as mais diversas explorações agrícolas que têm recebido prémios do "Countryside Fund" – um Fundo não estatal promovido por Carlos para apoiar o mundo rural.

Não sei se a revista vendeu muito em Londres, mas, no aeroporto de Heathrow, literalmente voava dos escaparates a ritmo alucinante. Talvez fossem sobretudo estrangeiros, como eu, intrigados com as excentricidades britânicas. Foram aliás estrangeiros quem mais celebrou o aniversário de Carlos, que foi passado ao serviço da rainha, entre a Índia e o Sri Lanka.

Pela primeira vez, a rainha Isabel fez-se representar pelo filho na cimeira dos países da Commonwealth, que teve lugar na sexta-feira, no Sri Lanka. No jantar de gala, o Príncipe de Gales recordou que visitara 151 vezes 41 dos 53 países da Commonwealth, sentindo-se já parte da família. Na sua mesa sentavam-se o Presidente do Sri Lanka, o primeiro-ministro de St. Kitts and Nevis, e os representantes da Tanzânia, Chipre e Samoa.

Tudo isto soa bastante peculiar aos ouvidos europeus. No entanto, na mesma semana, passaram quase despercebidas entre nós notícias de Bruxelas que seriam muito peculiares se se aplicassem a Londres. Refiro-me à recusa pela Comissão Europeia dos orçamentos nacionais de Espanha e Itália, por estes ultrapassarem os défices previstos pelas regras do euro. A Comissão também emitiu críticas às políticas orçamentais da Finlândia, Malta, Luxemburgo e França, bem como da Alemanha, desenhando orientações sobre o que devem fazer no próximo ano.

Se bem me lembro, a última vez que um orçamento foi decidido à margem do Parlamento de Londres terá sido em 1640. O rei Carlos I enfrentou então uma tempestade que conduziu a uma guerra civil, à sua própria decapitação, e ao estabelecimento de uma República puritana de muito má memória. Depois dessas e muitas outras peripécias, os ingleses decidiram em 1688 promover um "Bloco Central" entre partidários do rei e partidários do Parlamento. Com esse acordo entre moderados, afastaram os extremistas de sinal contrário – que defendiam ou o absolutismo real ou o republicanismo radical – e refundaram um regime monárquico, constitucional e parlamentar, que subsiste até hoje.

É graças a este regime que Carlos ocupa agora o cargo de príncipe de Gales e pode representar o seu país, à frente do seu primeiro-ministro, nas cimeiras dos 53 países da Commonwealth. Pode criar fundações e promover prémios para o mundo rural ou para a arquitectura tradicional, embora nunca com fundos públicos que não sejam aprovados pelo Parlamento. Também pode emitir opiniões públicas, embora não seja suposto emitir críticas a decisões parlamentares. E ninguém esperaria que emitisse juízos sobre o orçamento parlamentar britânico, muito menos desenhasse directivas sobre o orçamento de algum dos 53 países da Commonwealth.

Muitos observadores pensam que o príncipe de Gales e a monarquia constitucional britânica são excentricidades do passado. Pode ser que sejam. Raramente lhes terá ocorrido, todavia, que essas excentricidades possam estar associadas à persistente permanência de um Parlamento soberano em Londres e à inexistência de revoluções em Inglaterra desde 1688.

Talvez fosse altura de ponderarmos esta hipótese de correlação, no continente europeu e, sobretudo, na zona euro. Se continuarmos a caminhar alegremente para a erosão dos poderes soberanos dos parlamentos nacionais na zona euro, poderemos vir a ser surpreendidos pela descoberta de que as excentricidades inglesas não residem apenas no Príncipe de Gales. Elas estão indissoluvelmente ligadas à soberania do Parlamento nacional e a outra excentricidade britânica: a democracia.

Professor universitário, IEP-UCP e Colégio da Europa, Varsóvia

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