Uma Viagem pelo Outono, a despedida de Rui Nunes

Uma dor em cada vírgula, uma dor inscrita sem intuito de pedagogia, mas inscrita porque o viajante chama-se Rui Nunes.

Este é um livro que viaja pelo Outono numa memória particularmente ideológica; alguém que na sua cegueira – ou é a cegueira que viaja?; ou é a cegueira a personagem? – vê o que viu e sobretudo como viu; é o mesmo homem que percorre a intenção mortal das pontes do Reno; é o mesmo homem que está enterrado na memória coletiva, não recorda, escuta o terror, porque é o mesmo homem que os homens mortos, Horst-Wessel-Lied, uma e outra vez, o hino e as botas ao seu ritmo, o projeto mais letal que a cegueira conheceu na história da humanidade, na Europa, na sua vida; é o mesmo homem que viveu o que a idade diz que não, o mesmo homem que entra, no Outono da vida, na casa singular de uma infância concreta; a mãe antes e o que resta dela, essa dor: burocracia. O pai, sempre quase a morrer. Crescer sabendo de quem vive quase a morrer, uma espera, a infância estagnada; é o mesmo homem que se vê miúdo ou o lagarto na mão do miúdo. Da infância até à viagem pelo Outono, sempre a descoberta das minúcias. Uma outra casa, um avô não soletrado, a encher uma página. Duas casas. Dois legados de nomes.

Um Outono de um cego velho – ou sempre foi velho? – com o dever de um legado, um último suspiro, sem trocos, um livro retirado de todas as estantes, para si, e este, ou aquele, para quem o encontre, para mim, não interessa, um homem despojado. Não interessa. Quem morre escrevendo num Outono, numa viagem do mês da véspera, o homem com a “véspera” estampada numa outra capa, é indiferente. Despojamento absoluto. Contar para ninguém.

Esta é a viagem em que Deus é reduzido à sua miséria, esta é uma viagem sintética, definitiva, um ofício que ficou por terminar: destruir todas as palavras e começar sem essa corda, essa opressão, essa corda, palavras filhas de outras, bastardas, armas, letais, cordas, muitas vezes escrever “corda” para escrever isto, esta opressão, porque corda, diria, é o símbolo do enforcamento.

Ler o livro como uma partida, de quem sempre partiu, de quem sempre viajou para lugar nenhum, uma derradeira viagem, a sua, no Outono, porque Outono é a véspera do Inverno, que também pode chamar-se morte.

Uma dor em cada vírgula, uma dor inscrita sem intuito de pedagogia, mas inscrita porque o viajante chama-se Rui Nunes.

O Rui Nunes ideológico na casa da mãe e na Europa estupidamente animada pelo apelo de Homero, essa coisa de morrer pela pátria, essa arma aqui denunciada. O horror da ausência de substrato. A Europa vazia, a casa vazia, a árvore morta, que um cego progressivo abandona, sabendo da igualdade que conhece: o osso dos mortos, a igualdade nessa indiferença, os ossos dos fuzilados, os ossos dos gazeados, o viajante atira-se para a igualdade de uma vala comum.

Sem mais uma palavra porque a palavra “palavra” não é uma palavra hoje e porque a palavra “hoje” não é uma palavra. Que ladre um cão uma e outra vez em todos os lugares; que seja um cão a matar as palavras.

O Rui Nunes a morrer deixando um mundo morto; o Rui Nunes a morrer mutilado pelas palavras; o Rui Nunes numa Europa decadente; o Rui Nunes a morrer a insinuar a traição de quem pensou; o Rui Nunes a morrer, por isso, pondo a casa burocrática da mãe no Reno que atravessa a Europa; o Rui Nunes a morrer num mundo em que a traição “é uma luz póstuma”; o Rui Nunes a morrer pelos seus próprios olhos, ou o Inverno do seu rosto; o Rui Nunes a morrer sem o muro certo da sua morte, isto é, quem sabe da diferença entre quatro paredes e um muro, a que muro coletivo deve regressar para morrer?; o Rui Nunes a morrer usando a mão, em vez dos olhos, a mão que não sente palavras, mas que descobre a sua pedra; a sua lápide; Deus é apenas um nome e o viajante estará no Inverno num muro qualquer, a cair, como sempre acontece às heras de todos os muros: desaparecem. Ossos.

Que pobreza não saber sofrer nesta viagem; que pobreza não trair o viajante morrendo com ele.

Deputada do PS

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