Jornalismo vindo de fora

O PÚBLICO introduziu um novo sistema de pagamento dos conteúdos digitais. Por essa razão, continuamos hoje uma série de artigos sobre os grandes dilemas do jornalismo da actualidade. Hoje, vemos como a tecnologia faz proliferar projectos alternativos.

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Hélder Olino/arquivo

O site tem o funcionamento típico das plataformas de angariação colectiva de fundos: quem faz a proposta anuncia de quanto dinheiro precisa e os utilizadores podem contribuir para aquela meta, com quantias que podem ser muito pequenas.

Durante três meses, os trabalhos publicados na plataforma estarão disponíveis apenas para quem os financiou. Depois disso, poderão ser acedidos por qualquer pessoa. A empresa (que fica com 15% do dinheiro angariado) não faz qualquer trabalho de selecção, edição ou revisão dos textos. A única condição para se publicar no I Fund News é ter uma carteira profissional de jornalista.

A Edge Innovation não tinha, até aqui, qualquer projecto editorial. Na apresentação, um dos sócios, David Carvalhão, fez questão de frisar que o I Fund News não é — nem quer ser — um órgão de comunicação. Ao PÚBLICO, outro sócio, Pedro Malheiro, afirmou que a ideia surgiu quando, em conversa com amigos, falavam de um erro publicado num artigo da agência Reuters e que se espalhou rapidamente pelos media. No entanto, reconheceu que uma plataforma sem meios de revisão editorial não terá forma de contribuir para um jornalismo factualmente mais rigoroso.

s mentores do I Fund News argumentam que o enfraquecimento económico dos media e os constrangimentos das redacções estão a afectar o jornalismo. “Se a informação não é veiculada de forma fluida, clara e transparente, a divulgação não acontece, a pluralidade de ideias e posições deixa de estar patente, o debate não é estimulado, o confronto de ideias desaparece. E a democracia perde a sua essência”, lê-se no manifesto da plataforma.

Dois dias após o lançamento, havia no I Fund News uma única proposta de trabalho: uma reportagem com o mote “Porque é que há cada vez mais homossexuais com sida em Portugal?”. Tinha angariado quatro euros dos 1500 pedidos.

O projecto português está longe de ser o primeiro em que tecnologia e jornalismo se misturam, embora os vários casos tenham contornos muito diferentes.

Nos EUA, a Atavist é uma empresa que funciona com um negócio que envolve, por um lado, desenvolvimento de software e, por outro, a publicação de longas reportagens. A ideia inicial era editar e vender individualmente artigos de fundo, em plataformas digitais e “a um preço razoável”, explicou Charles Homans, o responsável editorial da empresa, ao telefone a partir de Nova Iorque. Porém, quando a Atavist publicou os primeiros trabalhos, começaram a surgir pedidos para usar a plataforma de publicação de conteúdos — e a empresa decidiu vender também este serviço.

Para além de misturar software e edição, a Atavist faz parte de um número crescente de projectos que estão a gravitar em torno dos artigos longos, antes publicados apenas ocasionalmente em revistas. Marco Arment, o primeiro funcionário da plataforma de blogues Tumblr, ganhou notoriedade em alguns meios depois de ter criado uma aplicação para ler artigos no iPhone. Depois disso, lançou uma revista para iPad que encontrou sucesso junto de um nicho de leitores. Nos últimos anos surgiu uma miríade de ferramentas que ganharam popularidade ao permitir aos leitores descobrir artigos de fundo e lê-los comodamente, em plataformas que colocam um ênfase na legibilidade e na ausência de distracções.

Homans, que participou há dias na conferência “O Regresso do Jornalismo”, na Escola Superior de Comunicação Social, diz que o espaço para trabalhos jornalísticos muito longos tem vindo a diminuir nas revistas, pelo menos do outro lado do Atlântico. “Depois da era dourada das revistas nos EUA, nos anos 1990, o declínio da publicidade fez com que o espaço nas revistas se tornasse mais pequeno”, explica. Mas os artigos muito longos são “provavelmente um mercado de nicho”, concede. “Não esperamos vender milhões de cópias de cada história.”

Também com o objectivo de motivar uma escrita mais pausada e profunda depois de ter popularizado o pensamento em 140 caracteres, Evan Williams, um dos fundadores do Twitter, criou, há cerca de um ano, uma plataforma chamada Medium.

O Medium não pode ser descrito como uma organização jornalística, mesmo à luz dos critérios menos apertados que a proliferação dos blogues foi, há alguns anos, responsável por criar. É um projecto situado nas franjas do jornalismo, oscilando entre ser um espaço para a publicação de reportagens e uma ferramenta para simples posts (Williams fez os primeiros milhões ao criar e vender o Blogger ao Google).

Tal como nas redacções convencionais, há editores. Mas, contrariamente às redacções, a função destes não é rever textos, nem acompanhar o trabalho de redactores e repórteres — é escolher, com o auxílio de algoritmos, os melhores textos para os colocar na primeira página do site e os enviar por email aos membros.

Há uns meses, o Medium publicou uma longa reportagem sobre um mercenário e as suas aventuras nos Andes. Foi escrita por um repórter profissional que tem no currículo publicações como as prestigiadas Wired e New Yorker. Foi editada por um outro jornalista. Porém, clica-se no botão para passar ao artigo seguinte e surge um texto na primeira pessoa com conselhos de carreira. Alguns cliques adiante, reflexões sobre bacon ao pequeno-almoço.

Nesta semana, numa entrevista ao jornal New York Times, Evan Williams foi vago em relação ao projecto e ainda mais vago em relação a um modelo de negócio. Diz que já acreditou mais na possibilidade de a Internet permitir uma informação livre e sem filtros e que a proliferação de comunicação online está a gerar muito ruído e um fenómeno de irracionalidade. “Nos primeiros tempos, acreditei na ideia de que a Internet levaria a um mundo melhor, que a verdade estaria cá fora e de que não precisaríamos de quem a seleccionasse. Agora, acho que é mais complicado do que isso”, disse Williams ao jornal americano, afirmando querer “dar uma hipótese à racionalidade”. E como é que o Medium vai fazer dinheiro? “Veremos”, respondeu.

De outros bolsos recheados com dinheiro vindo da tecnologia tem surgido uma preocupação com o estado débil do negócio dos jornais. Recentemente, o criador da Amazon, Jeff Bezos, comprou o histórico Washington Post, num negócio muito mediatizado e com Bezos a ser frequentemente retratado como o depositário das esperanças do sector.

No mês passado, o fundador do site de leilões eBay, um americano de origem iraniana chamado Pierre Omidyar, contratou o jornalista Glenn Greenwald (responsável pela divulgação do caso NSA e dos documentos de Edward Snowden) para lançar uma organização de jornalismo de investigação.

Já antes, Omidyar financiara outros projectos jornalísticos, embora de menor ambição. Por seu lado, Greenwald é um licenciado em Direito que ganhou notoriedade no sector da cibersegurança graças a um blogue que escrevia. Alguns media hesitaram durante algum tempo em chamar-lhe jornalista.

Com uma fortuna de muitos milhões no banco, estes empreendedores do mundo tecnológico podem ter várias motivações para incursões jornalísticas: desde a mais altruística preocupação pela democracia e por uma sociedade informada até ao desafio pessoal de inovar em mais uma indústria. Steve Jobs — que ajudou a moldar a indústria dos computadores e transformou a da música, a dos telemóveis e a das vendas digitais — falava frequentemente das possibilidades de aplicar a tecnologia ainda a mais sectores. A educação era um exemplo frequente, mas também chegou a discutir questões do negócio do jornalismo com o magnata dos media Rupert Murdoch. Murdoch, aliás, e na sequência de conversas com Jobs, lançou um jornal especificamente para o iPad, que acabou por ser um fracasso.

“Desenvolvi um interesse em apoiar jornalistas independentes de uma forma que permita alavancar o trabalho deles da forma mais abrangente possível, tudo em prol do interesse público. E quero encontrar formas de converter os leitores em cidadãos activos”, escreveu Omidyar recentemente, no Huffington Post. O empresário ainda não tem uma forma concreta de realizar esse objectivo: “Neste momento, estou numa fase muito inicial da criação de uma nova organização de mass media. Ainda não sei como ou quando será apresentada, ou como vai ser.”
 
 
 

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