A voz feminina emancipou-se e agora mente

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Rogério Martins

Para Vicente Alves do Ó e para Carmen Santos, o pôr-do-sol é a mais angustiante altura do dia. Ele sente-se inquieto e ela cheia de fome. Na encenação de A Voz Humana, de Jean Cocteau, que estrearam esta quinta-feira no Teatro de Trindade, em Lisboa, e que continua em cena até 8 de Setembro, tudo se passa nesse momento de transição entre o dia e a noite. Em palco, durante pouco mais de uma hora, entra pela grande janela com inspiração Art Déco das primeiras décadas do século XX uma luz que simula a do sol que se põe dando lugar à noite cerrada. A ideia de Vicente, realizador de filmes como Florbela ou Quinze Pontos na Alma e desta vez encenador, é recriar a sala de estar de um apartamento chique da Paris dos anos 30, onde a luz imita a da vida real, e não a luz dramática que muitas vezes se fabrica no teatro: na nossa vida não se acendem spotlights em momentos chave, diz ele.

“Ouve, meu querido… eu tenho estado a mentir… ao telefone, há um quarto de hora que te minto”, diz a mulher fragilizada de A Voz Humana ao homem que a deixou, numa conversa telefónica. Está a preparar o terreno para começar a dizer a verdade, para gritar que está desfeita por ele a ter deixado, que não consegue sair de casa, que se tentou suicidar. Esta é a interpretação que ao longo de mais de 80 anos (desde que o monólogo foi apresentado pela primeira vez em 1930, na Comédie-Française) se tornou viral. Mas Carmen Santos não quer aceitar o que toda a gente já fez pelo simples facto de não acreditar que aquela mulher (que nem sequer tem nome) seja uma mulher submissa. Quando a mulher abandonada que Carmen apresenta diz “querido, estive este tempo todo a mentir-te”, não está a consumir-se, fragilizada. Está descontraída, com um ar blasé, e mente-lhe novamente e cada vez mais para seduzi-lo através do poder encantatório das histórias inventadas.

“O discurso dela está cheio de rasteiras e está demasiado organizado para alguém que está em total desespero”, argumenta Vicente, sublinhando as ironias que há em todo o texto, desde graças sobre o suicídio a críticas ao comportamento da personagem masculina, sempre ausente. “Uma pessoa que usa a ironia não é uma pessoa fora do controlo, o que nos deu a liberdade para acreditar que ela está sempre a mentir — a mentira total”, diz ainda. Para o encenador, esta é, mais que a leitura possível, a leitura correcta de A Voz Humana.


No princípio era o telefone

A mulher sem nome fica junto à janela colossal e debaixo do candelabro coberto com um lençol branco a falar ao telefone. Toda a casa parece grande de mais para a mulher pequena e abandonada. Mas depois senta-se no divã numa pose descontraída e segura, e então controla o espaço e o jogo. “Ela está a fazer render o tempo”, diz Carmen, “conta histórias para controlar e passar a uma posição de poder”. A mulher que a actriz desempenha pode ter sido abandonada, mas agora dá as cartas de um jogo de sedução que se assemelha ao de Xerazade, que efabulava todas as noites para salvar a própria vida. Esta mulher inventa para poder continuar a usufruir do amante, para que ele sinta necessidade de voltar a ela, mesmo estando prestes a casar-se com outra, dizem o encenador e a actriz. “A partir do momento em que ela está a jogar, este texto pode ser tudo”, acrescenta Vicente. 

Desafiado por Carmen há três anos para encenar este texto, Vicente Alves do Ó correu algumas das interpretações mais conhecidas de A Voz Humana disponíveis na Internet: a de Simone Signoret, destroçada mas calma, a de Ingrid Bergman, que em camisa de noite chora ao telefone, a de Anna Magnani, com um ar tão desfeito como a cama em que se senta. Em Portugal, Eunice Muñoz, Isabel de Castro, Maria Barroso e, mais recentemente, Emília Silvestre, entre outras, interpretaram esta mulher sem fugir à tradição das lágrimas, da exasperação, por vezes dos gritos. Mas a personagem que Vicente decidiu reinventar só gritará quando a ligação telefónica (nos anos 30, ela própria cheia de fragilidades) falhar.

Pôr em cena uma mulher diametralmente oposta àquela que foi apresentada pela primeira vez nos anos 1930 e repetida até hoje não foi apenas um capricho: “Seria um motivo fraquinho. Honestamente nós acreditamos que a mulher do texto é esta que estamos a fazer”, diz Carmen.

Para sustentar mais esta certeza, há Jean Cocteau que, além de ter vivido uma época de emancipação feminina em que o mundo viu nascer e crescer figuras como Coco Chanel ou Marlene Dietrich, era um provocador. “Não o estou a ver criar outro tipo de mulheres que não essas — criativas, loucas, mas acima de tudo muito fortes. Esta mulher tenta aproximar-se do universo feminino de Cocteau”, sublinha o encenador, que confirma: este é também o seu universo feminino. Em 2009, escreveu a peça Amália em Nova Iorque; em 2012 dirigiu o filme Florbela, sobre Florbela Espanca, e publicou o livro Marilyn à beira-mar. “As mulheres do Vicente têm um caminho que não é um caminho com alguém, é um caminho delas”, reforça Carmen. 

Aqui, o caminho de mais uma das mulheres de Vicente traça-se pelo telefone. É aí que a mentira e a invenção se tornam possíveis. “Ouço-te como se estivesses aqui no quarto”, diz ela, sabendo que a proximidade não passa de uma ilusão e que isso faz parte do jogo. Ele só tem acesso à sua voz, que pode dizer o que quiser enquanto o corpo (que ele não está a ver, ao contrário dos espectadores) mostra o contrário: diz que está em camisa de dormir enquanto vemos que usa um vestido de noite. “O telefone opacifica”, nota Carmen. A sua personagem diz antes que “o telefone é uma arma assustadora”. 

Para Vicente, este é o objecto que antecedeu a Internet e as redes sociais na transformação das relações. “Quando temos um aparelho que nos permite dissimular a realidade, tudo é possível.” Foi por isso que ele tomou uma posição central no palco e na encenação, logo desde o início: antes de qualquer coisa acontecer, o público já viu o telefone, no chão, na boca de cena. O jogo começa e recomeça sempre que ele toca.

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