“Não sei se posso concordar que o défice e a dívida dispararam por causa do investimento público”

Economista Alfredo Marvão Pereira diz que a reacção dos EUA à crise foi melhor do que na Europa, mas aconselha americanos a olharem para os casos de Portugal e da Grécia.

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Alfredo Marvão Pereira DR

Como tem visto a resposta da Europa à crise?
Com grande preocupação. Acho, contudo, que a crise portuguesa existira independentemente da crise internacional e daí que tenha aspectos mais idiossincráticos. Acho que já em meados dos anos 1990 era claro que se não houvesse uma contenção orçamental séria os problemas da dívida soberana iriam surgir mais cedo ou mais tarde com maior ou menor intensidade. Claro que a conjuntura internacional tornou a coisa uma tempestade perfeita para nós mas os problemas foram criados por nós e não pela crise internacional. A resposta quando os problemas começaram a ser identificados nos anos 1990 foram muito na linha de que tínhamos boa protecção na UE. Lembro-me, aliás, de um episódio em que um alto dignitário me deu como analogia que a nossa economia e orçamento no contexto do PEC eram como os cacilheiros. Nos cacilheiros existem ou existiam anúncios que encorajavam as pessoas a não entrar em pânico em caso de naufrágio, já que não estavam no mar mas num rio relativamente estreito e a ajuda viria de pronto. A economia portuguesa era o cacilheiro, o rio a UE e a ajuda o BCE e a CE. A UE, por sua vez, tem grandes responsabilidades ao nunca ter levado a sério as condições de “no bail out” que todos os países aprovaram e ratificaram e por nunca ter havido a noção das dificuldades que surgiriam na zona euro pelo facto de economias em sérias dificuldades não terem acesso aos mecanismos cambiais.  

Num primeiro momento na crise financeira na Europa, até 2010, incentivou-se os países em dificuldades a injectar dinheiro na economia, nomeadamente através de investimento público, como forma de debelar a crise. A dívida e o défice dispararam, sobretudo nos periféricos. E a partir daí a receita tem sido exactamente o contrário, ou seja, austeridade e uma quase total restrição às políticas orçamentais expansionistas. Passámos dos 80 para os 8?
É essa exactamente a minha perspectiva sobre questões de investimentos de iniciativa pública – passamos dos 80 para o 8! Dito isto não sei se posso concordar com a sua premissa de que o défice e a dívida dispararam por causa do investimento público. O nosso problema, como antes mencionei, é estrutural e muito mais antigo. Os investimentos de iniciativa pública são parte do problema mas não a sua fonte. Mais importante ainda os investimentos de iniciativa pública tem de ser parte da solução se bem que não a única solução.

Um dos grandes investimentos que ficou nessa altura pelo caminho foi o TGV. Acha que o Governo fez bem e deixar cair o projecto?
Sim, sem dúvida. Acho que todos os estudos de análise custo-benefício que vi sugerem o mesmo, que este projecto não era financeiramente viável, dada a reduzida dimensão do país e o número de passageiros que seria necessário para que o fosse. Note-se, aliás, que mesmo quando é rentável a rede de alta velocidade ferroviária de passageiros tende a competir e a afectar seriamente outros tipos de transporte a começar pelo aéreo – veja-se o que está a acontecer em Espanha.

Como é que tem visto o papel da Alemanha ao leme da tentativa da Europa acabar com a crise? Acha que a postura germânica vai mudar caso, como tudo indica, a CDU reedite a Grande Coligação com o SPD?
Acho que a postura vai mudar porque tem de mudar e mudará com ou sem coligação. Não se vai abdicar da austeridade, mas existe já nas instâncias internacionais - a começar pelo FMI - e mesmo na Alemanha uma clara noção de que é preciso temperar a austeridade com crescimento e emprego. O facto de Portugal ainda ter a bem merecida reputação de bom aluno e de os indicadores económicos estarem finalmente a mostrar sinais positivos não deixará também de nos colocar numa boa posição face a este recalibrar de postura.

Os EUA e o próprio FMI têm criticado a Alemanha por não reduzir o seu excedente comercial (através do aumento de salários e aumento das importações), o que tem impedido que outros países, como Portugal, possam reduzir os seus défices excessivos. Sendo que a Alemanha argumenta que o seu “excedente comercial reflecte a forte competitividade da economia alemã e a procura internacional de produtos alemães”. De que lado está a razão nesta polémica?
Acho que é mau princípio deitar as culpas para quem tem sucesso comercial internacionalmente, seja a Alemanha ou a China. Os EUA fariam o mesmo que a Alemanha ou a China estão a fazer se tivessem no seu lugar, como aliás fizeram historicamente. Não se pode esperar que um país abdique das suas vantagens comparativas assim sem mais. Claro que se pode evocar a solidariedade europeia mas esta tem sido evocada em muitos contextos e há muitos anos por exemplo no contexto de políticas de coesão etc. Isto tudo dito, não deixa de ser verdade que seria extremamente útil e conveniente uma política alemã mais favorável. Mas acho que nos devemos concentrar naquilo que controlamos directamente.

Vive nos EUA, onde a crise começou com o subprime. Qual é a diferença de política que levou com que os EUA tenham resistido muito melhor à crise do que a Europa? Uma política mais acomodatícia da Fed?
Para lá de ter um tecido económico forte – apesar dos tremores recentes - a economia norte-americana tem um grau de integração económica, monetária e financeira muito mais madura do que a UE. Tem sobretudo uma muito maior experiencia em lidar com estas situações. A situação na UE é genuinamente nova e surpreendentemente inesperada para as instâncias superiores. Acabou por trazer à luz do dia clivagens económicas, politicas, sociais e culturais que não existem certamente com a mesma intensidade nos EUA.

A dívida astronómica dos EUA, 17 biliões de dólares de dívida pública, mais de 100% do PIB, é uma bomba relógio?
É uma bomba relógio não tanto pelo que é, mas por o que virá a ser em menos de uma década se não se tomarem medidas sérias de contenção e de reforma. Os números da dívida pública americana são bem grandes historicamente, passando os 100% do PIB. O problema, contudo, é que na ausência de mudanças, as despesas públicas têm uma dinâmica explosiva. Os gastos estão muito concentrados nos sistemas de saúde e de segurança social, que são mais de 60% do orçamento do estado. Os juros de dívida a roçar os 10%, com a maturidade da dívida a ser cada vez mais curta. Para mais, as despesas de saúde e segurança social estão em grande crescimento e estes sistemas tem problemas estruturais que condicionam a sua sustentabilidade a médio prazo. Junta-se a isto a total relutância do eleitorado americano em aceitar ou mesmo contemplar subidas de impostos. Existem algumas semelhanças entre a situação orçamental que hoje se vive nos EUA e a que se vivia em Portugal nos meados dos anos 1990. Os problemas são reais mas o espoletar da crise orçamental não é inevitável. Para mais no caso dos EUA o poderio económico é enorme. Ainda assim acharia bem que as autoridades americanas olhassem com sobriedade para os casos de Portugal e da Grécia. Estes casos ensinam-nos, entre outras coisas, que se não resolvermos os problemas quando a solução é relativamente indolor vamos ter de os resolver quando a dor chega a ser insuportável e chegamos a duvidar se a cura é melhor do que a doença.

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