“Investiu-se nalguns casos apenas porque se tinha de fazer algo com o dinheiro”

O economista Alfredo Marvão Pereira fala sobre os erros na aplicação de fundos comunitários.

Por que é que os chamados países periféricos, nomeadamente Portugal, estão a enfrentar tantas dificuldades? Esses países têm algum denominador comum?
De um ponto de vista histórico estes países sofrem todos de carências estruturais relacionadas com problemas de financiamento e, portanto, de deficientes estruturas produtivas competitivas. Se nos colocarmos no princípio dos anos 1980 poderíamos ver que os mercados financeiros domésticos estavam estrangulados com enorme escassez de crédito ao sector privado e com enorme dificuldade em acesso aos mercados financeiros externos a custo razoável. Daí enormes problemas com o investimento privado. Por seu lado, as contas públicas estavam em enorme dificuldade com fracas bases fiscais e sem grande capacidade de endividamento público. Daí uma grande escassez de infra-estruturas e de uma mão-de-obra altamente qualificada – capital humano se quiser. Os fundamentos do crescimento não existiam. As semelhanças dessa situação com a actual são, aliás, perturbadoras.

No seu ensaio constata que países como Espanha, Grécia, Irlanda, Portugal foram os principais beneficiários dos programas estruturais de financiamento comunitário e, curiosamente, são os que hoje enfrentam as maiores fragilidades? A entrada de dinheiro de Bruxelas e a forma como foi gasto criou vícios ou maus hábitos nas políticas públicas?
Não sei se diria que criou maus hábitos mas certamente que reforçou muito os maus hábitos existentes. Isto foi particularmente verdade em duas áreas. Primeiro, um dos pontos programáticos deste financiamento era a condição que os projectos co-financiados teriam de ser para lá dos que o país recipiente já tencionava implementar, a chamada questão da adicionalidade. Isto foi virtualmente impossível implementar. Daí que a evidência seja de que de um ponto de vista da procura agregada houve um desvio significativo de financiamento para fins de consumo, ou seja, os fundos europeus foram em parte para projectos que iriam ser feitos de qualquer modo e esses fundos canalizados para actividades de consumo. Segundo, o co-financiamento comunitário foi muitas vezes exagerado, o que levou a uma diminuição artificial do risco para os investidores domésticos e levou à adopção de muitos projectos de fraca rentabilidade e alto risco. Investiu-se nalguns casos apenas porque se tinha de fazer algo com o dinheiro. A estes dois factores de incentivos internos juntou-se uma inadequada supervisão das instâncias comunitárias. Foi preferível muitas vezes fechar os olhos às ineficiências nas aplicações destes fundos como aliás foi em muitas outras questões no contexto da criação do Euro. Isto para já não falar nalgum clientelismo interno…

No seu livro diz que mais de metade dos investimentos em infra-estruturas efectuados nos anos 90 e cerca de um terço na última década foram cobertos pelos QCA. Pode-se então concluir que sem o dinheiro de Bruxelas Portugal não tinha o nível de desenvolvimento que tem hoje?
Penso que isso é indiscutível. Aliás se assim não fosse seria muito difícil perceber por que razão continuamos a pedir estas transferências.

No próximo QREN, o Governo já disse que parte substancial do dinheiro vai ser canalizado para as PME, emprego e políticas de competitividade. Ou seja, os investimentos em infra-estruturas não são claramente prioridade. Concorda com esta forma de alocar o dinheiro?
Não conheço naturalmente os detalhes das negociações mas no geral não vejo problema nisso. Não vejo problema que as infra-estruturas não sejam a primeira prioridade desde que também não sejam marginalizadas ou ignoradas. Acho, aliás, boa ideia que se aposte numa qualificação crescente da nossa força de trabalho de modo a aumentar por essa via a nossa anémica produtividade. O mesmo com a competitividade do sector privado. Fica a preocupação de entrarmos em áreas em que a fungibilidade do financiamento comunitário é ainda mais difícil de verificar.

O aumento da taxa de comparticipação comunitária para 85% para os países em maiores dificuldades e a consequente redução da comparticipação nacional (pública e privada) não pode ser um mau incentivo moral, ou seja, incentivar o uso dos fundos comunitários mesmo quando possam não ter uma total racionalidade económica?
Compreende-se a intenção mas acho péssima ideia. Vai ainda contribuir mais para a ineficiência no uso destes fundos. Vai ainda mais ajudar a cultivar os maus hábitos de que há pouco falávamos. Teriam de ser encontrados mecanismos – empréstimos em termos aceitáveis mesmo bonificados – para uma muito maior participação doméstica.

Faz sentido trocar o conceito de transferências comunitárias a fundo perdido por empréstimos e garantias às empresas? Não é uma solução mais eficiente que faz “esticar” (alavancar) o dinheiro que vem de Bruxelas?
Eu vejo as coisas de modo um pouco mais diverso. Tudo depende da área de intervenção e se quiser da falha de mercado ou de intervenção pública que se quer ajudar a corrigir com estes programas. Quando se trata de projectos de investimento privado puro e simples, isso sim, parece que os fundos perdidos fazem pouco sentido de um ponto de vista económico. Empréstimos e garantias seriam o caminho seguir. Quando se trata de investimentos de iniciativa pública quer em infra-estruturas quer na formação de capital humano penso que a participação comunitária pode ser a fundo perdido mas ainda assim com uma significativa participação do Estado nesses projectos. No caso de o Estado não estar em condições de participar com fundos próprios, empréstimos em termos adequados seriam a alternativa. A preocupação envolvente é evitar que estes fundo se tornem apenas benesses com poucas obrigações para quem deles beneficie.
 

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