Economia, ciência ou nem por isso?
Lembrei-me deste tema com a apresentação, esta semana, do guião com orientações para a reforma do Estado e fundamentalmente com os tão diversos comentários que esse documento suscitou. Não está em causa o conteúdo porque, mesmo de memória, lembro-me da maioria das ideias nas propostas eleitorais dos partidos preferidos por cerca de 70% dos portugueses. Haveria portanto pouco de novo a comentar, esperando eu que as opiniões que daí surgissem versassem mais sobre a definição de políticas concretas, a quantificação, os impactos nas contas públicas de cada uma das medidas e a forma de as implantar. Pois como sabem pouco ou nada disto aconteceu. Os comentários sucederam-se mas fundamentalmente sobre a bondade para o bem-estar dos portugueses das diversas medidas avulsas. Para alguém com o mínimo interesse na construção da ciência económica mantém-se a dúvida: sendo o problema português tão bem definido relativamente ao défice, à dívida e à falta de produto não haverá uma solução baseada na ciência económica?
A questão é recorrente e claro que coloca a dúvida se a própria economia poderá ser considerada uma ciência. Repare-se que ainda recentemente dois economistas, Fama e Shiller, foram distinguidos com o prémio de Economia em memória de Nobel com ideias aparentemente contraditórias em relação à previsibilidades da evolução dos preços nos mercados de capitais. Tive a oportunidade de escrever sobre este prémio e sobre o aparente desacordo entre os dois economistas mas agora, numa perspectiva diferente, o que está em causa é se uma matéria que pode suscitar teorias tão contraditórias terá uma base científica suficientemente consistente e robusta que possa ser usada na definição de políticas económicas e monetárias para cada país.
É verdade que não há consenso mesmo sobre as questões fundamentais da macroeconomia, coisas simples como as causas da recessão ou as determinantes para o crescimento são bons exemplos mas isto não é diferente do que observamos na medicina, onde pelo menos há mais de um século se procura definir como o que comemos e mesmo o estilo de vida afectam e são determinantes para a nossa saúde e longevidade, matérias ainda hoje muito pouco consensuais. Conhecemos, por exemplo, estudos científicos que nos recomendam coisas como o café, o chocolate e até o vinho e outros tantos que defendem exactamente o contrário e não é por isso que pensamos que a medicina não deva ser considerada uma ciência ou, mais importante, que os médicos não devam basear as suas decisões com base nas melhores evidências do estudo da medicina.
A mais dura critica à construção do conhecimento na área da economia usa como principal argumento a impossibilidade de recorrer à experimentação. Não seria a primeira vez que ouvimos críticas deste género em relação às decisões políticas, mas imaginem os custos sociais, para além das questões éticas, se os governantes decidissem por variadas politicas para depois observar os efeitos na economia e na vida das pessoas com o argumento de se obter um maior conhecimento na matéria. No limite, é evidente que ninguém gostaria que, de uma forma propositada, se criassem novas crises financeiras só para perceber melhor os seus efeitos. Claro que isto é uma limitação à construção da ciência, mas por razões que todos entendem e concordam.
Identifico entretanto que muito tem mudado nas metodologias de investigação na área da economia. Há quem fale em modas, não sei se será, mas de facto os economistas mais reconhecidos há algumas décadas, como por exemplo os conhecidos Paul Krugman ou Janet Yellen, baseavam a sua investigação na teoria e na construção de modelos que continuam a ser usadas e a “condicionar” muito do pensamento económico. Daqui derivam, penso eu, os comentários jocosos de quem não se dá bem com as folhas de Excel, quando os ditos modelos não produzem, na prática, os efeitos esperados. Em contraposição, uma nova escola de novos economistas baseia a sua investigação muito mais em trabalhos empíricos, focando-se fundamentalmente no teste de hipóteses baseadas nas antigas teorias e na formulação de novas teorias baseados em novas hipóteses consistentes com a observação da evolução das economias. É o caso, nomeadamente do canadiano David Card e da francesa Esther Duflo mas não identifico qualquer evidência que os governantes actuais baseiem as suas decisões neste “tipo” de economistas. Esta alteração nas metodologias mais usadas de investigação encontra paralelo noutras ciências, nomeadamente na medicina, em particular no estudo das terapias em doenças do coração, que tanto têm contribuído para uma maior longevidade e qualidade de vida mesmo que ao mesmo tempo se mantenham outras dúvidas sobre questões fundamentais na área da saúde.
Vejamos um exemplo no nosso país. Ouvimos alguns economistas, nem sempre políticos, argumentar que o subsídio de desemprego da forma como estava instituído era um forte incentivo para que os desempregados não procurassem nova actividade profissional e consequentemente tivesse um efeito negativo tanto na taxa de desemprego como no crescimento económico. Diferentes partidos políticos e outras organizações tomaram posições sobre este assunto, classificando a eventual medida de redução dos benefícios desde disparatada, mais uma medida de roubo ao estado social e uma óbvia anulação de direitos adquiridos. Não me pronuncio sobre a bondade duma medida deste tipo mas pergunto-me sobre a base científica, se é que foi usada, para as opiniões que surgiram sobre o assunto. Ando com algum treino na procura destas coisas e confesso que não encontrei nenhum estudo sobre a realidade portuguesa. Como quando não se tem cão se caça com um gato procurei estudos sobre este tema noutros países e aprendi que nos Estados Unidos os benefícios aos desempregados são definidos e distintos em cada Estado e existem alguns estudos académicos que comparam a taxa de desemprego nos Estados que aumentaram este tipo de benefícios. Mais uma vez repare-se na analogia em estudos científicos na área da medicina, em que tantas vezes se compara os efeitos num grupo a quem se administra determinado medicamento e se compara com um grupo que não o tenha tomado.
Interessa-me muito mais se a ciência económica pode e deve servir de base a decisões politicas mas, apenas pela curiosidade, revelo os resultados (quase) consensuais dos estudos que li sobre este tema da relação da taxa de desemprego com os benefícios aos desempregados. A conclusão é que uma extensão de 10 semanas nos benefícios aos desempregados aumenta, no limite, apenas uma semana no tempo que as pessoas se mantêm desempregadas, o que prova, cientificamente, que a extensão dos subsídios de desemprego não aumenta de forma relevante a taxa de desemprego. É este tipo de base científica que gostava de ver mais usada na generalidade dos nossos políticos.
Um outro exemplo, ouvimos ainda há dias o nosso Ministro da Educação e Ciência falar dos efeitos nefastos de professores eventualmente mal preparados que ensinam nas nossas escolas. O risco parece evidente e uma questão pertinente é se esses mesmos professores têm alguma culpa mas voltamos ao mesmo, baseou-se esta afirmação apenas no bom senso e conhecimento popular ou utilizou-se algum estudo científico sobre o impacto de um professor de excelência na vida adulta dos estudantes? É que estes estudos existem e em “amostras” de milhões de alunos, os seus resultados não são relevantes e não devem ser usados?
Talvez a principal polémica sobre políticas económicas nos dias de hoje é entre a escolha de medidas de austeridade ou de estímulos à economia. Retiro da discussão os casos tão curiosos dos partidos políticos que defendem um dos caminhos quando estão no governo e outro quando estão na oposição. Não é disso que se trata, o que está em causa é saber se no âmbito da ciência um problema deste tipo não tem uma solução recomendável. Aparentemente esta dúvida sobre se devemos privilegiar as medidas de austeridade ou de estímulo estende-se também à comunidade científica. Os economistas Paul Krugman e Joseph Stiglitz, reconhecidos pelas suas posições contra as políticas de austeridade, são ambos prémios Nobel da economia mas a mesma comissão que atribui este prémio também já distinguiu da mesma forma talvez o mais crítico economista às teorias keynesianas, que defendia que o rigor orçamental era o único caminho possível para o desenvolvimento sustentado, o economista James McGill Buchanan. Resta-nos então aprofundar um pouco o que cada uma destas correntes defende para perceber se de facto a teoria económica sugere o arbítrio político de seguir por um ou outro lado.
Há que reconhecer que ambas estas correntes de pensamento económico não se distinguem tanto quanto aos princípios económicos mas sim em relação a como a sociedade deveria funcionar. Pessoalmente considero ser esta uma triste conclusão, preferia muito mais que das evidencias resultasse uma única solução.
Paul Krugman defende que a prioridade de curto prazo na escolha de políticas económicas deve evitar o desemprego. O raciocínio é simples, os desempregados perdem hábitos e competências, o que a prazo reduz o potencial de crescimento da economia e até a percentagem de população activa, o que seria um risco muito maior que um eventual problema de inflação ou de acumulação de dívida. Em contracorrente, James Buchanan alerta para um problema que nos é familiar, manter níveis de despesa superiores às receitas é fácil de começar mas muito difícil de inverter. O raciocínio também é simples, a despesa cria dependências, seja de particulares, de empresas ou de outras instituições, que “tudo” farão para que esses benefícios não acabem e até por uma questão de popularidade eleitoral o aumento de impostos não é solução para manter o nível de gastos.
Buchanan concorda que níveis exagerados de desemprego limitam o crescimento da economia e consequentemente a criação de novos empregos mas argumenta que o mesmo tipo de problema é criado pela má alocação de recursos quando os políticos insistem em subverter as regras normais de mercado. Isto é, sem dúvida, uma crítica à corrente de pensamento económico de Krugman mas fundamentalmente é um atestado de inabilidade aos governantes que insistem em seguir aquelas politicas. Basicamente é o mesmo que dizer que não podemos confiar que os políticos governantes consigam gerir a economia da forma que Keynes prescreveu. Em nome da bondade de reduzir a taxa de desemprego actual, atuam de forma a provocar um maior desemprego no futuro.
O principal vaticínio de Buchanan, que me parece exagerado, é que a tentativa dos governos insistirem nos estímulos à economia resultariam num crescimento insustentável de ineficiências estruturais. Coisas como a rigidez na legislação no trabalho, mais frequentes na Europa ou de medidas proteccionistas, como as que assistimos no Japão, impedem a “normal” utilização óptima de recursos, com efeitos negativos para todos a prazo. É minha opinião que esta é uma visão extrema e pouco realista do problema, nem toda a despesa pública é desperdício e fundamentalmente, por uma questão social, não se pode esperar que os governantes não atendam às necessidades de curto prazo das pessoas. Entendo as teorias económicas que defendem que a prazo as melhores soluções surjam sem interferências do Estado, mas este não tem nem pode ter apenas a preocupação de soluções a prazo, existem responsabilidades de curto prazo, em especial em relação aos de menores recursos.
Retomando a questão principal deste texto é bom que se diga que é possível, teoricamente, conciliar as teorias económicas de Krugman e Buchanan. Parece aliás uma questão de bom senso. Em períodos de crise os governos devem usar medidas pontuais de estimulo à economia que aumentem a procura de modo a conseguir um regresso ao crescimento de forma mais rápida. Sabemos no entanto no que é que isso resultou em Portugal, no inicio desta crise começamos a gastar de mais para estimular a economia, talvez não da melhor forma e no final tínhamos um nível de endividamento que nenhum potencial credor acreditou ser sustentável a não ser os nossos parceiros da troika que nos deram a mão nas condições que conhecemos. Mas Portugal não é caso único, longe disso, veja-se o caso do Japão que durante duas décadas usaram a despesa pública, o endividamento e a criação de moeda adiando as reformas estruturais que o País precisava.
Paul Krugman, Joseph Stiglitz e outros economistas podem bem continuar a argumentar que a metáfora da mão invisível do mercado defendida pelo “pai” da economia Adam Smith é uma teoria desactualizada, que nos serve de pouco em especial quando temos a noção que os mercados são imperfeitos. Mas os exemplos de insucessos na aplicação do que defendem mostram bem que a sua verdade científica está longe de ser uma fato que nos sirva a todos. Sou obrigado a reconhecer a razão dos políticos que dizem que estes economistas de referencia são muito melhores a descrever os problemas do que a arranjar as melhores soluções de governação.
São destas coisas que me levam a responder “nim” sobre se economia é uma ciência que possa servir de base à definição de políticas económicas. É que não tenhamos dúvidas, o principal desafio é encontrar o melhor equilíbrio entre o mercado e os governos. Numa coisa tenho poucas dúvidas, os dois são necessários e devem-se complementar. O compromisso entre eles não é estável, depende do tempo e do local. Conciliar tudo isto de uma forma sistemática é o trabalho de quem nos governa. Num outro ponto também tenho poucas dúvidas, se continuarmos a achar que um guião com orientações para a reforma do Estado só deve ter comentários políticos estaremos a cortar as pernas a todos os de bom senso que poderiam aumentar a nossa qualidade de vida enquanto a pudéssemos aproveitar. A inabilidade para o consenso em certas matérias por quem nos governa tem uma consequência evidente, continuaremos a ser governados pelo poder económico, aquele que ninguém votou e que nem sempre nos dá jeito.
Consultor em projectos de investimento e seguros de crédito