Habermas: partidos europeus optam pelo oportunismo perante um desafio histórico
O filósofo e sociólogo alemão falou na Gulbenkian sobre a crise europeia e a necessidade de criar instituições democráticas transnacionais.
O filósofo e sociólogo alemão Jürgen Habermas, um dos maiores pensadores do nosso tempo, encerrou com estas palavras a sua conferência sobre a democracia na Europa, esta segunda-feira, na Fundação Calouste Gulbenkian, em Lisboa.
Houve casa cheia para ouvir as palavras do autor de A Transformação Estrutural da Esfera Pública, que em 2010 falhou a presença em Portugal por razões de saúde (o médico proibiu-o de ler e de escrever, disse o constitucionalista Gomes Canotilho). Desta vez, aceitou fazer a viagem até Lisboa por se tratar de uma conferência sobre educação. Tratou-se do regresso à Fundação Gulbenkian dos encontros internacionais sobre a questão da educação e o tema eram os livros e a leitura na era digital.
Habermas, 84 anos, atravessou o palco devagar até chegar ao púlpito, no canto esquerdo, e a sala seguiu em silêncio quase reverencial a viagem, curta e lenta. Agradeceu o convite e os elogios com que foi apresentado (Artur Santos Silva, presidente da Fundação, descrevera-o como “um europeu como já não há”) e começou por se desculpar por não ter com a era digital a mesma familiaridade que tinha com o universo mediático dos anos 1960, quando escreveu A Transformação Estrutural da Esfera Pública.
Soma de espaços públicos
O tema do pensador da teoria crítica, uma das principais figuras da Escola de Frankfurt, que procurou actualizar o pensamento marxista, era a democracia na Europa hoje. O que tinha para comunicar ao público de Lisboa era uma reflexão sobre a crise das democracias nacionais provocada pela globalização e pela desregulação dos mercados e a necessidade de introduzir processos de legitimação democrática a nível supranacional.
Ou seja, sobre a forma como as decisões dos governos dos estados-nação são cada vez mais insignificantes face ao peso das organizações internacionais. “Os estados-nação tiveram que entregar o controlo dos mercados e já não puderam desempenhar o papel independente que lhes cabe. Numa sociedade mundial altamente interdependente, mesmo as superpotências estão a perder a sua autonomia funcional em importantes domínios. Por enquanto, o preço a pagar pela governação para lá dos estados é a crescente insignificância dos processos de legitimação no interior do estado-nação”, afirma Habermas. E resumiu o problema a uma pergunta: “É possível alargar as fronteiras da legitimação democrática para lá das fronteiras do estado-nação?” A resposta era afirmativa: “A transnacionalização da democracia oferece uma saída a este dilema”, disse.
Para isso acontecer, explicou o autor de Teoria da Acção Comunicacional, é necessário que surjam novos tipos de comunidades transnacionais e “a União Europeia é suposta ser a primeira desse tipo de instituições”, afirmou. No entanto, prosseguiu, a crise da zona euro é a prova de como é difícil o caminho até se chegar a um “sistema democrático supranacional ambicioso e com vários níveis”. Ultrapassar o actual estado de coisas implicava, defendeu, uma mudança no espaço público europeu, um espaço que é mais uma soma de espaços públicos nacionais do que um fórum de discussão de questões genuinamente europeias e comuns a todos os estados-membros.
“O caminho que esta crise tomou mostrou-nos que é necessário mudar de política. A União Monetária da Europa implica um enquadramento partilhado de políticas fiscais, económicas e sociais. Apenas isto lhe permitirá libertar-se das garras dos mercados financeiros e responsabilizar os investidores e não os contribuintes”, começou por argumentar Habermas. No entanto, para seguir este caminho, os países têm que se afastar dos egoísmos nacionais e adoptar uma perspectiva europeia comum.
“O aprofundamento de uma cooperação institucionalizada exige uma transferência adicional de soberania e a consequente revisão dos tratados; as elites políticas precisariam de encontrar coragem para levantar, nas suas arenas políticas nacionais, a controvérsia inevitavelmente polarizadora sobre as estratégias alternativas, nenhuma das quais pode ser seguida sem custos”, prosseguiu.
Por outras palavras, é preciso sair do discurso confortável dos egoísmos nacionais, como aquele em que os europeus do norte condenam os do sul e vice-versa. Isso implica que o sectores sociais afectados pela crise passem a olhar para os outros como parte de uma mesma comunidade, independentemente das fronteiras.
“Até aqui, a direita populista tem resistido a um aprofundamento da União baseando-se na leitura dominante que esconde os conflitos de interesse entre vencedores e vencidos da crise por detrás do antagonismo entre os autodenominados países doadores e países devedores”, defendeu. Portanto, “é preciso que os media nas arenas nacionais quebrem a ligação entre as questões da distribuição (quem recebe o quê?) e a questão da identidade (quem somos nós?)”.
Se estas controvérsias não forem lançadas nos espaços públicos nacionais, “a Europa provavelmente será cada vez mais sugada para um tipo de tecnocracia no qual se ‘consolidam’ os estados-membros a nível individual e estes são moldados de acordo com o formato das ‘democracias conformadas ao mercado’”.
Mas os partidos políticos evitam a questão da solidariedade europeia, daquilo que os europeus devem uns aos outros. “Vejo isto como um sinal de timidez política, quando não de puro oportunismo, perante um desafio de dimensões históricas”, concluiu o filósofo.