As autárquicas foram salvas pelo Tribunal Constitucional
É por isso que, depois de parágrafos e parágrafos a considerar que a lei tanto se pode interpretar a favor como contra as pretensões dos candidatos com três ou mais mandatos sucessivos, o Tribunal decidiu pela solução mais fácil e mais óbvia: face às dúvidas e à demissão dos deputados dos seus poderes legislativos, decida-se pelo que dá menos canseira. Uma atitude compreensível, pois. E sensata.
Compreensível porque no caso de ambiguidades em relação a leis que põem em causa direitos, liberdades e garantias, os valores democráticos exigem que essas restrições sejam o mais ténues possível. Entre o risco de não se obter a desejável e necessária renovação dos titulares dos cargos políticos e o perigo de se retirar a cidadãos direitos elementares como o de serem eleitos e de terem acesso esses cargos, o mal menor está na primeira condição. Durante todo este debate em torno dos ditos autarcas veteranos (alguns não merecem ainda o estatuto de “dinossauro”) esse balanço de princípios só não foi mais vezes valorizado porque esta lei tem implícito um rancor dirigido aos autarcas e em especial a alguns autarcas, com Luís Filipe Menezes à cabeça. Uma lei que deixa de fora da limitação de mandatos, por exemplo, os presidentes dos governos regionais, é muito pouco geral. Essa relativização de valores ficou também de fora porque, num tempo em que fica bem o mata e esfola dos políticos, uma pulsão populista como a do Bloco de Esquerda tem mais hipóteses de singrar do que um debate sobre o alcance da liberdade e das suas restrições.
Ainda que a falta de precisão da letra da lei tenha impedido o TC de banir dos municípios os autarcas com mais 12 anos de poder, não se pode dizer que a renovação do pessoal político, prescrita pela Constituição, não tenha avançado Não, a proibição de uma quarta candidatura sucessiva a uma mesma autarquia é um enorme avanço neste caminho. O que interessa proteger como valor essencial da democracia é a equidade nas condições de acesso, ou de eleição, a determinado cargo e em determinado local, e sabe-se que os presidentes de câmara ou de junta que estão no poder têm sempre mais meios, muitas vezes pouco legítimos, para reconquistarem o poder. Sendo proibidos de se recandidatarem a um quarto mandato, os autarcas perdem esse privilégio e abrem a porta a novas candidaturas. E se mudarem de circunscrição perdem igualmente essa vantagem comparativa que é ter nas mãos as rédeas do poder. A máquina autárquica é outra e não está nas suas mãos, os interesses são outros, o eleitorado é outro. Proibir um cidadão de exercer direitos fundamentais como o de ser eleito não está pois neste caso justificado pela necessidade de promover a equidade eleitoral nem a renovação: só se justifica pela tentativa de alguns políticos beneficiarem da sanha contra os políticos que, compreensivelmente, grassa na sociedade.
Finalmente, e à margem de princípios e interpretações da Constituição, a decisão do Tribunal em autorizar as candidaturas de veteranos justifica-se com o sensato receio do vespeiro que viria a seguir. Proibir candidatos que, como Menezes, aparecem à frente nas sondagens inquinaria estas eleições autárquicas com as suspeitas de golpe de estado constitucional. Havendo dúvidas, muitas dúvidas, sobre a limitação de mandatos, o pior que podia acontecer era permitir a ideia de que os candidatos que viessem a ser eleitos só o foram porque outros foram travados pelo Tribunal. Em causa estaria a sua legitimidade, enquanto os afastados seriam sempre vistos como heróis do povo derrotados por uma sinistra coligação de interesses. Nos dias duros em que vivemos, esse seria o pior pesadelo possível.
Fosse pela leitura da Constituição fosse pela prudência em evitar o caos depois do dia 29, fosse pela recusa em ser o caixote para onde o sistema político está a vazar as suas incoerências, incompetências e cinismos, os juízes do Constitucional fizeram não só o que deviam fazer mas também apenas o que podiam fazer.