Ettore & Fred

Exercício menor, mas pleno de auto-ironia, em que Ettore Scola homenageia o seu amigo Federico Fellini, ajudando-o a abandonar a sua morte – que aconteceu há 20 anos. Sobretudo não chorem, resmunga Ettore, ao verem Che Strano Chiamarsi Federico .

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Che strano chiamarsi Federico, de Ettore Scola
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Che strano chiamarsi Federico, de Ettore Scola

É o tal filme que Scola, que receberia na sexta-feira o Glory to the Filmmaker’s Award, não vê razão para provocar lágrimas, até porque, disse, isso aborreceria Federico, temperamento disposto à auto-ironia. “Federico não faz chorar. Basta ver os seus filmes.” Reacção alérgica, portanto, a rituais e automatismos de missa.

Conheceram-se em 1947, Ettore mais novo dez anos, na revista satírica Marc’Aurelio. Que alimentava o entertainment nos anos italianos do pós-guerra e foi uma estufa onde germinaram talentos que o cinema italiano utilizaria, como, ainda, Steno ou o duo de argumentistas Age & Scarpelli.

Unia-os, a Ettore e a Federico, a caricatura e o sentido de humor. Mas também a resistência ao desporto e à actividade física. E tiveram em comum, ainda, Marcello Mastroianni. Mas tiveram-no cada um à sua maneira: Federico tratava-o melhor do que se tratava a si próprio, cuidava da dieta alimentar de Marcello, por exemplo; já Ettore acompanhava-o aos restaurantes. Mas a mãe de Marcello queixava-se a Scola que o filho só era belo nos filmes de Fellini. Por isso Federico não o chamou para o casting de Casanova, em 1976 (chamou Gassman, Tognazzi e Sordi, mas a figura de pássaro depenado numa Laguna veneziana feita com lonas a ondular é o corpo de Donald Sutherland). Ettore chamaria Marcello para o seu Casanova, La Nuit de Varennes (1982).

Che strano chiamarsi Federico começou por ser pensado, aqui em Veneza, como o filme-homenagem com imagens de arquivo. Proposta que Scola remeteria para um qualquer jovem montador com paciência e ganas para enfrentar o imenso material que documenta Fellini. A hipótese de fazer um filme sobre a sua relação e admiração por Federico seria incentivada pelos netos, insistindo para que o avô desse o corpo ao manifesto.

O resultado é um híbrido: mistura material de arquivo com a recriação - actores e rodagem no estúdio 5 da Cinecittà onde o realizador de Ginger & Fred inventou o seu mundo - dos tempos em que os dois se encontraram e Fellini, entretanto já argumentista em Roma Cidade Aberta e Paisà, partia para o seu O Sheik Branco. Reconstitui, por exemplo, os passeios de carro que ambos davam por Roma, já na fase madura do seu relacionamento e da sua vida, dando boleia a prostitutas e a pretendentes a príncipes, como se fosse um concessionário ambulante – é o próprio Ettore que aparece a falar com o vulto Federico.

Há qualquer coisa de exercício menor à Fellini, em Che strano chiamarsi Federico. Que até utiliza o estúdio de que o “maestro” fez o seu mundo. Nesse gesto de fazer à Fellini há muito de exercício de auto-ironia de Ettore que, depois das imagens do funeral, imagens da época, com Marcello, Anita Ekberg ou Roberto Benigni a chegarem ao estúdio 5 para a homenagem final, ajuda o amigo, esse grande mentiroso, a abandonar a sua própria morte, perseguido pelos dois soldados que fizeram guarda de honra ao seu caixão.

     

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