Como os miúdos portugueses vêem o mundo
O que é que os adultos ouvem quando decidem dar atenção às crianças? Livro reúne declarações dos mais novos sobre temas diversos.
A ideia de juntar frases de crianças surgiu depois de Maria Inês de Almeida, jornalista e escritora, expor no Facebook o que o seu filho, José (agora com cinco anos) ia dizendo. “As pessoas reagiam e sugeriam-me que fizesse um livro com as frases dele. Depois, com a editora (Esfera dos Livros), pensámos que seria interessante fazer um livro com as frases de crianças espalhadas por todo o país (incluindo as regiões autónomas)”, conta a autora ao PÚBLICO. E acrescenta: “Elas têm muito a dizer sobre os mais variados temas. Nós [os adultos] é que temos de parar para as escutar, desafiar e estimular.”
No entanto, a autora não queria “provar” o que quer que fosse: “Este livro não é argumento de uma tese. É uma escuta. Nós supomos demasiado que conhecemos as crianças e é necessário dar-lhes a palavra. Aprender com elas.”
Sobre a escola e sobre a morte, por exemplo, há declarações muito expressivas. “A escola é o lugar onde nos ensinam a escrever, a ler e a magia da Matemática”, diz Flávia, com nove anos e a estudar em Arganil. Mas também se diz que, “na escola, a sopa não tem cor, é branca” (Rita, quatro anos, Abrantes) ou “a escola esmaga o que aprendemos com o computador” (António, sete anos, Lisboa). Para a madeirense Inês, de dez anos, “a escola é a nossa vida. Se a destruirmos, destruímos também a nossa vida”.
Sobre a morte
Falando da morte, há depoimentos reveladores das posições e contradições dos adultos. Frei Bento Domingues, que analisou algumas das reflexões das crianças, conclui: “Os pais sentem a morte quando é tragédia familiar. Aliás, a morte só passa a ser uma experiência nossa quando morre alguém que amamos muito, a quem estamos ligados, que faz parte de nós. Nessa altura, nascem as interrogações. A partir daí, já contam as posições culturais, filosóficas e religiosas de cada um.”
Dizem as crianças: “A morte é a última coisa feita por todo o ser vivo (Zenna, nove anos, Pêra); “Estive a pensar: as pessoas não vão para o céu quando morrem… porque senão caíam” (Francisco, três anos, Lisboa); “A morte é quando vamos ter com Jesus” (Tiago, seis anos, Oeiras); “Morrer deve ser muito chato, não quero experimentar” (Joana, oito anos, Lisboa).
Maria Inês de Almeida quis traçar um retrato das diferentes famílias e relações. “Não há só uma maneira de ver e acho que o interesse do livro é mesmo esse: dar voz a muitas vozes. Esta sabedoria infantil. A minha conclusão é a de que devemos sempre valorizar as crianças. E muito nesta idade da vida. A fase da infância é breve, sempre a correr, e temos a tentação de passar depressa para a idade seguinte, onde já há concepções mais elaboradas.”
A surpresa com as respostas é nítida, segundo a mensagem enviada por email pela autora, ao enumerar aleatoriamente as frases das crianças: “Ter amigos é ter uma família igual à do Pai Natal”; “O amor é um quebra-cabeças”; “Os computadores são miolos”; “Políticos? Eu não sei nada disso, só vejo o Zig Zag!”
A cenoura dos políticos
Fixemo-nos em frases sobre os políticos: “Os políticos podem ser mandões, mas apesar disso nós não podemos fazer nada, pois foram as pessoas que os escolheram” (Carolina, nove anos, Armação de Pêra); “Um político é um pássaro com muitas cores” (Diogo, cinco anos, Lisboa); “Os políticos mostram-nos a cenoura e roubam-nos a alface” (Jorge, nove anos, Armação de Pêra).
Maria Inês Almeida conta como os miúdos aderiram bem ao desafio de escrever os seus pensamentos e de como os adultos participaram activamente na recolha e dinamização do projecto editorial. “Contei com ajudas preciosas. Foram dois anos de actividade de recolha, selecção e de ordenamento das frases. Precisei de estabelecer uma rede de apoio, com a ajuda desinteressada e generosa de muita gente, e para isso tinha de estabelecer prazos de entrega. Foi importantíssima a contribuição de amigos, vizinhos, pais, professores, a Rede de Bibliotecas Escolares, as direcções de algumas escolas, amigos de amigos, etc.”
Mas continua a contar com uma fonte indispensável e inesgotável: “Tenho comigo uma nascente, uma provocação contínua que é o meu filho José.”
Deus É Amigo do Homem-Aranha
Texto: Maria Inês de Almeida
lustração: Rita Correia
Edição: Esfera dos Livros
296 págs., 16,50€