O saber impalpável

Basta ir a uma biblioteca para ver a maior parte dos seus utilizadores já não diante de livros, mas diante de computadores e tablets

Foto
DR

No livro "Uma História da Leitura", Alberto Manguel conta que quando o jovem Santo Agostinho chegou a Milão, em pleno século IV d.C., foi procurar o bispo da cidade, Santo Ambrósio, amigo de sua mãe.

Ambrósio era um homem de quarenta anos, baixo e barbudo, famoso pela sua coragem e fé, que várias vezes o tinham posto em conflito com a família imperial dos Valentinianos.

Mas Ambrósio tinha uma particularidade que deixou o jovem Agostinho perplexo. O bispo gostava muito de ler, como era normal em alguém da sua craveira e eloquência, mas lia de uma forma estranha: sozinho na sua cela, segurando o livro à sua frente, mexendo os lábios sem proferir um único som, completamente alheado do mundo.

Normal na altura seria ler em voz alta, rodeado de outras pessoas, em partilha e debate com estas, mas Agostinho não podia imaginar que Ambrósio praticava já o tipo de leitura moderna que só se tornaria comum a partir do século X.

Esta leitura sem som, sem a presença física do outro e que nos puxa para dentro do mundo virtual das palavras é talvez a primeira forma de virtualização do saber, o momento em que a escrita deixou de ser apenas um registo gráfico do som das palavras – um mau substituto da riqueza do diálogo, segundo Platão – e passou a ser outro universo, o universo da escrita, com o qual cada pessoa dialoga intimamente.

Esta virtualização continua a expandir-se hoje, em que a palavra também abandona o suporte físico e tátil onde costumava habitar, e cada vez mais se restringe aos ecrãs, aos ebooks, aos sites e ao ciberespaço.

Basta ir a uma biblioteca para ver a maior parte dos seus utilizadores já não diante de livros, mas diante de computadores e tablets, enquanto os livros em papel aguardam pacientes nas prateleiras o momento em que também eles serão levados para dentro do universo digital.

E, como aponta a recém-inaugurada Biblioteca Pública Digital Americana, é possível que no futuro até as bibliotecas se tornem virtuais, e as palavras já não estejam fechadas em livros físicos, mas atravessem todos os ecrãs que nos rodeiam e criem um universo virtual que passamos a habitar em permanência.

Sugerir correcção
Comentar