Aeromoças à beira de um ataque de nervos

Andamos há tanto tempo a desejar que Almodóvar regresse aos seus dias de inspiração depois de três filmes “menores” (Voltar, Abraços Desfeitos e A Pele onde Eu Vivo) que, agora que nos fez a vontade com Os Amantes Passageiros, andamos todos ó tio ó tio ai que o homem se estragou de vez. Situado a bordo de um avião com um problema no trem de aterragem, Os Amantes Passageiros é um retorno ao Almodóvar provocador dos tempos da movida, ao Almodóvar “cor-de-rosa” de Mulheres à Beira de um Ataque de Nervos. Claro que não é possível recuperar a energia entusiasta desses dias, nem a sensação de inocência tresloucada e meio inconsciente de O Que Fiz Eu para Merecer Isto? ou Negros Hábitos. Mas Almodóvar sabe-o, e é essa consciência que dá ao novo filme uma despretensão absoluta ao mesmo tempo que faz dele um bombom armadilhado - como a água de Valência com mescalina que (recordando o gaspacho com Morfidol das Mulheres à Beira) atira os passageiros da primeira classe do vôo Peninsula 2459 entre Madrid e a Cidade do México para o êxtase sexual. Armadilhado porque Os Amantes Passageiros não é um mero delírio diletante: tal como o cineasta passou toda a sua carreira a “hispanizar” à sua medida os clássicos do cinema americano, das comédias cor-de-rosa de Doris Day aos grandes melodramas femininos de Sirk ou Minnelli, mesmo num filme “descartável” o homem é incapaz de deixar de ser cinéfilo, até no modo como se “canibaliza” a si próprio.


Aqui são as comédias cartoonescas de Frank Tashlin, os filmes-Z, as convenções da comédia gay, a sua própria obra inicial e as sátiras ao filme-catástrofe que são atiradas para dentro do 1-2-3 e batidas até a coisa deitar por fora, com o elenco a curtir que nem um castor (menção especial ao trio de aeromoços bicha formado por Javier Cámara, Carlos Areces e Hugo Arévalos) e toda a produção visual a assumir o lado de europudim retro-kitsch fajuto. Espécie de Aeroplano! em modo musical de praia comandado por uma tripulação esgrouviada com ambições a show travesti das Puertas del Sol, Os Amantes Passageiros é um Almodóvar de vintage 1980 que não é um grande Almodóvar vintage, mas apenas galhofa hispânica garantida por 90 minutos. Não se lhe peça mais que isso.

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